terça-feira, 26 de novembro de 2019

Sul - Temporada 1, por Eduardo Antunes


Título original: Sul (2019– )

Se Sul prometia uma interessante jornada criminal pelo contexto financeiramente crítico português, é demonstrada ironicamente a falta de economia, temporal, posta neste projecto. Como a sua congénere Filha da Lei, peca precisamente ao arrastar uma narrativa policial simples, rapidamente perdendo o rumo originário por entre fracas tentativas de mostrar o seu contexto particular, o que acontece aqui desde o primeiro episódio.

Não ajuda que a série, em pequenos aspectos, faça lembrar recentes mini-séries britânicas, baseadas em romances criminais por Agatha Christie. Porque o que faz em grande medida falta a Sul é como essas são capazes de ilustrar uma época específica em toda a sua virtude e decadência, numa empolgante narrativa envolta em mistério criminal contada eficazmente em pouco episódios.

Ao final do primeiro episódio, surge a possibilidade do caso que abre a série poder estar relacionado com um outro mais antigo, o que nos remete imediatamente para a familiaridade de outras séries norte-americanas, que arranjam o mesmo dispositivo narrativo para nos aliciar à permanência para os episódios seguintes. Mas no final, dada a simplicidade do caso e a falta de aprofundamento das críticas à crise - que nem nas notícias radiofónicas que vamos ouvindo encontra o dispositivo informativo suficiente para o seu desenvolvimento - fazem com que essa semelhança não corresponda às expectativas que a própria série cria.

Em entrevistas, o criador da série afirmou a sua visão sobre a série como um filme prolongado, e nota-se tal vontade na falta de coadunação de uma para outra linguagem. Pois se cinematicamente acompanhamos durante duas horas uma narrativa, em formato serial a cada final de episódio temos que esperar a semana seguinte pelos próximos cinquenta minutos. Isso, infelizmente, fere em demasia a série que, até metade, vai perdendo o interesse dos expectadores por a cada episódio quase nada acontecer, e que, não tendo um breve resumo do que sucedeu anteriormente, permite-nos esquecer certos aspectos relevantes à narrativa criminal por serem apresentados esparçamente. O que acaba por não ser um problema nosso, porque o próprio argumento se vê necessitado de fazer o básico resumo da investigação nos minutos anteriores ao genérico do último episódio.



Se a série, desde a sua promoção, se informava enquanto uma história policial durante as dificuldades económicas do país, existe um claro potencial desperdiçado na junção dessas duas vertentes. Pois é quando o médico legista refere os cortes orçamentais do departamento da polícia, e como isso afecta a possível conservação dos cadáveres pela pretendida poupança de energia, que imaginamos o que seria a tentativa de proceder a uma investigação por entre dificuldades técnicas impostas pelos mandatários que nenhuma sensibilidade têm pela profissão. Mesmo a velha viatura que Humberto se força a utilizar não advém de cortes orçamentais, mas antes da sua teimosia em "carros de colecção".
Em vez disso, fica uma clara divisão entre a investigação policial e o acompanhamento de um casal com fracas perspectivas financeiras, que nuca se cruzam aparte o encontro entre Humberto e Matilha. E ainda que seja em Matilha e Mafalda que encontramos o carácter de toda a série, numa relação afectada pela crise que se permite evoluir, até no final pomos em causa qual o destino deles, que partem rumo ao desconhecido, ambos sem emprego.

Paralelamente, surge em dada altura um caso de suicídio advindo da crise financeira, mas que em nada se interliga com o caso principal, ficando perdido na restante série. Mesmo a suspeita morte de uma idosa num apartamento faz-nos tecer ligações com a exploração imobiliária que no quinto episódio surge como possível mote dos assassinatos, mas os próprios argumentistas não lhe reconheceram interesse. Ao invés, à terceira das vítimas escolhidas, das quais duas são reconhecidas personalidades, não entendemos porque apenas Humberto acha suspeitas as circunstâncias das suas mortes.



Mas se a história propositadamente se afirma básica, é na semelhante e problemática caracterização das suas personagens que se reconhecem as falhas patentes na sua alongada duração. Durante toda a série, a personagem de Alice, a detective companheira de Humberto e suposta segunda protagonista, não ganha qualquer desenvolvimento substancial, nem nenhuma conclusão perceptível sobre a sua vida privada. Ficamos a entender a circunstância do emprego do marido e a existência de um filho, mas não temos qualquer pista para quem ela é, para a sua personalidade ou motivação. Aliás, a sua parceria com Humberto não passa de um conjunto de trocas verbais maliciosas, apenas por serem de gerações e métodos diferenciados.

Já Humberto é o típico detective ao estilo do cinema neo-noir. Inspector da velha guarda, que não se verga às novas tecnologias, seja sob a forma de viatura ou computador. Bebe, fuma, e não lida bem com o sistema no qual se vê obrigado a enquadrar enquanto detective, manobrando sempre à margem do seu chefe e companheira. O problema não está na utilização deste estereótipo, mas na falta de oferta de algo novo à fórmula conhecida, nem no carácter português específico da série.
Se é interessante a sabotagem (in)consciente de Humberto da indesejada venda do seu apartamento aos estrangeiros que lhe surgem à porta, nunca ficamos a entender a ligação mais aprofundada que o inspector tem às memórias ali residentes nem a necessidade de vender a casa, necessidade inexistente chegado ao final da série. Nem à sua problemática relação com a própria filha recebemos uma resolução.



Igualmente, passa-se demasiado tempo em acompanhamento da personagem de Ivo Canelas e suas manhas, que não têm particular relevância para o desenvolvimento da narrativa, principal ou secundária. Mesmo quando perto do final Matilha e Mafalda parecem estar em perigo devido às actividades do pastor, não existem quaisquer consequências para os mesmos para lá de uma marca na sua porta. Serve esta personagem apenas para alimentar um estereótipo (porque tinha o falso culto evangélico que ser engendrado por um brasileiro?), apesar de no final, face o falhanço do seu empreendimento original e passando para um novo golpe, poder ter sido de maior interesse mostrar a personagem do "pastor Santoro" ela própria como uma personagem de entre várias. Serviria o próprio sotaque como truque, permanecendo, no entanto, apenas a estranheza do desnecessário casting de Canelas como um brasileiro.

De toda esta panóplia, a banda sonora pelos Dead Combo, não só se demonstra a perfeita condensação do trabalho da banda portuguesa (no que parece ser a despedida da mesma enquanto tal), como ilustra da melhor forma o clima neo-noir pretendido, adaptado ao nosso contexto cultural na sua única instrumentalização.

Se a aparente vontade de surgir daqui uma nova temporada, alegadamente passada em parte em Macau, assim como um spin-off (ao actual género norte-americano de fazer negócio cinematográfico) é ilustrativa de alguma coisa, é da vontade dos criadores quererem dar um passo maior que a própria perna, focando-se numa ideia pretendida – de uma narrativa neo-noir durante a crise financeira, numa cidade luminosa mas em decadência – sem a substância necessária para apoiá-la. Teria sido preferível ter reduzido esta a um terço da sua duração ou mesmo, ainda que arriscado, a um filme, como parecia ser o intuito consciente do seu autor, em vez de sermos alvo de uma longa e desapontante experiência.



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