segunda-feira, 21 de março de 2011

Cisne Negro, por Carlos Antunes


Título original: Black Swan
Realização: Darren Aronofsky
Argumento:
Mark Heyman e Andres Heinz
Elenco: Natalie Portman, Mila Kunis, Vincent Cassel, Barbara Hershey, Winona Ryder e Benjamin Millepied

Ninguém imaginaria que a mais delicada das artes perfomativas poderia ser o palco de um negro drama resvalando para o violento thriller psicológico.
Pelo menos ninguém que seja leigo e conheça o ballet apenas das visões que o cinema tem dele, mesmo daquelas que se revelaram magníficas.


Mas sabem, mesmo que não muitas vezes foquem o assunto, que se trata de uma arte obsessiva que exige o comprometimento dos anos mais importantes do desenvolvimento.
Os anos de formação identitária, de exploração do mundo, da perda da inocência e do ganho de resistência/cinismo.
A frescura da idade é colocada ao serviço de uma obsessão. A frescura da idade é consumida e substituída por um foco que deixa pouco espaço à observação do que se encontra no mundo em volta, por exigir ao corpo as reservas de energia que a mente ainda tem.
Isto, sobretudo, quando a obsessão é reforçada por uma progenitora que faz da filha veículo dos sonhos que perdeu, castrando a independência e a personalidade, submetendo os sonhos e a consciência a um único objectivo.


O que Nina nunca viveu descobrirá - por exigências artísticas, por influências inesperadas, por vontades enebriantes - num intervalo muito reduzido onde tudo o que é vida e arte se mescla e intensifica.
Nina tem de aprender a representar o que sempre lhe foi ocultado. Mas a representação é também vida e ela tem de experimentar tudo.
Nessa altura, o mais difícil exercício deles todos é a procura da falha.
Quem lutou toda a vida para atingir a perfeição de movimentos - e, com ela, uma perfeição da personalidade e da vida que são mais esterelidade do que um estado gracioso da existência - tem de conseguir expressar a imperfeição. Libertar o corpo para que este dê lugar à visceralidade dos aspectos mais embaraçantes ou repulsivos da vida.
Não existe nenhum ser que não seja contaminado pelo que faz e pelo que o rodeia.


Nina, no momento em que precisava - ou em que deixou de conseguir conter a necessidade - de uma mudança na sua vida encontrou no protagonismo de O Lago dos Cisnes a caixa da ressonância das pulsões que sente.
Só não estava preparada para o grau de ressonância da sua própria alma, para o agigantar do que a transformará.
A sua arte tomou conta do que ela tinha para dar sem o saber, e tornou isso num monstro que continuou a consumi-la sem que ela pudesse resguardar-se ou escolher o que entregar.
Daí que as visões que a atormentam surjam menos como um cisne do que como um abutre, uma criatura que aguarda a última queda de um corpo moribundo.
Nina é a sua própria criatura, em processo autofágico, irremediável. Condena-se, sem mais.


Se há vidas capazes de mudar o mundo, só uma obra de arte é capaz de mudar muitas vidas, sempre numa maneira distinta.
Isto diz-nos o filme através do grau de simbiose que Aronofsky fez da sua tese com a sua forma.
Os seus planos dominantes, o grão sujando a beleza das suas imagens, as luzes e sombras que irrompem pelos espaços definidos e a sua visão justa mas intrusiva para com os personagens. Tudo sublinha a mesma obsessão da protagonista, invadindo-nos a arte do filme como a arte do ballet o faz com ela, não só fascinando mas alterando o caminho do que veremos e como o veremos daí para a frente.
Tudo é dúvida também nas imagens, mas dúvida dominada pela mão de artesão, sugestiva e dominante, mas não filha do acaso.
O mesmo que se deve dizer da interpretação de Natalie Portman que a tudo se submeteu e que tudo entregou.
O seu reconhecimento foi automático pelos prémios que reconhecem a arte da interpretação mas é impossível não (querer) ver algo mais importante na realidade... A mesma alegoria que o filme expressa, mesmo que isso seja já um embelezamento pessoal, um fait divers inconsequente.
Afinal, pelo seu trabalho mais duro e longo, com verdadeiro sofrimento físico, foi-lhe entregue uma relação e a maternidade.
A obra faz, pois, a vida superar limites, para melhor ou para pior, mas nunca de forma ténue.


Nisto tudo, Aronofsky acabou por filmar não só uma obra de arte, mas também o processo irrepetível de uma obra de arte.
O processo que pede uma devoção total, que exige uma entrega em absoluto - e, aqui para Nina, em definitivo - e que define a sua irrepetibilidade.
Num segundo visionamento não sei se conseguiria deixar passar o retrato um pouco simplista da sexualidade ou as cenas feitas para um efeito pontual e não em favor do filme como um magnífico objecto total.
Por isso aguardarei até que rever este filme seja como vê-lo pela primeira vez. Irei esquecê-lo para que possa redescobri-lo verdadeiramente.
Uma obra de arte, uma obra-prima, também é isto, uma experiência extraordinária mas (inevitavelmente) única e isolada no tempo da memória.



2 comentários:

  1. Parabéns! Gostei mesmo da tua crítica. E não foi por teres dado 5*. :P

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  2. Muito boa crítica, tão "bonita" como o filme.

    João Vagos

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