sábado, 18 de dezembro de 2010

José e Pilar, por Tiago Ramos



Título original: José e Pilar (2010)
Realização: Miguel Gonçalves Mendes

«Se eu tivesse morrido antes de conhecer a Pilar, aos 65 anos, teria morrido muito mais velho do que serei quando chegar a minha hora», diz José Saramago mais que uma vez durante o filme. Daí que facilmente se perceba que José e Pilar não é uma biografia sobre o Prémio Nobel da Literatura português ou uma longa dissertação sobre a sua obra. Não é um documentário que encontramos através das imagens, é antes o quotidiano de duas personagens. É uma história de amor, duas histórias de vida que convergem numa só. É a vida, é o amor.

«Tudo pode ser contado de outra forma» diz o poster, condensando todo o filme. Porque se há factor positivo que deve ser encontrado no trabalho de Miguel Gonçalves Mendes - um dos mais promissores da sua geração - é a frescura daquele que corta com as normas convencionais do documentário. Abdicando do formato panfletário acerca da obra de José Saramago ou da estrutura comum de perguntas e respostas em jeito de entrevista, o português acaba por criar um filme que podia muito bem ser ficção. É sobretudo pela subtileza e sensibilidade com que a lente de Miguel Gonçalves Mendes filma que José e Pilar se destaca. O espectador encontra-se no centro da intimidade de um casal, no seu dia-a-dia, na sua espontaneidade e decisões mais banais, como no meio de períodos difíceis para ambos, quer seja uma doença ou a morte de um ente querido, mas nunca de uma forma invasiva.



E as personagens que aparentemente conhecíamos de outras lides, mais polémicas e notórias, apresentam-se aos nossos olhos quase camaleónicas. Mas de uma forma mais humana, verdadeira e realista. Ele, mais bem humorado, mais comovente, mais apaixonado. Ela, mais protectora, fulgurante e sem filtros. E ambos são o oposto um do outro. Ele, um ser melancólico, pensativo, mais frio. Ela, uma figura enérgica, intempestiva, quente. Ambos se complementam de uma forma única e encantadora tão bem revelada nas cerca de duas horas e meia que compõem o filme. José e Pilar. Apenas. Porque aqui não existe Saramago ou de Del Río. Existem simplesmente o José e a Pilar, duas pessoas iguais a tantas outras, cheias de força, apaixonadas, cuja paixão e Amor os liga à vida. E o mais curioso de tudo é que nada deles é assim tão invulgar, diferente de outros casais - embora os deste género são cada vez mais raros. É a sua banalidade, comum e transversal a outros, a sua simplicidade que os torna mais humanos e distanciados da imagem mediática.

Entre a banalidade da sua vida, a escrita de A Viagem do Elefante. Uma viagem incansável, de quilómetros e quilómetros, avião atrás de avião, escala atrás de escala, cidade após cidade - e as perguntas sempre as mesmas e as respostas sempre iguais - uma enfermidade que coloca José Saramago no hospital durante cerca de 5 semanas, mas no fundo sempre uma enorme força de viver. «Se eu tivesse morrido, imaginem o que eu teria perdido». E uma vontade de concluir o livro, de concluir a viagem do elefante oferecido pelo rei D. João III ao primo, o arquiduque Maximiliano da Áustria. Uma viagem entre a ficção e a realidade. «Pilar, Pilar. O livro». No meio de tudo isso, nunca o medo da morte. Simplesmente a pena de não viver mais, de não se poder continuar. «O que queres que te faça?». Resposta pronta: «Continuar-me».



A Pilar del Río cabe essa função. Continuar José Saramago, ser interveniente, assumir sem pudores a sua opinião, fazê-la vincada, ser cidadã. Viver para desassossegar, como quem reinventa uma frase usada há muitos anos. E a ela não se permite depressões, dores, tristezas - «sou totalmente a favor dos fármacos» - porque o que a move é aquela energia contagiante, aquele ímpeto espanhol, aquela que mudou Saramago. É movida pelo amor, mas é acima de tudo movida pela vida. «A Pilar, o meu pilar».

Se o mérito de vida cabe a José e Pilar, o mérito de quem a resolveu seguir com simplicidade única cabe a Miguel Gonçalves Mendes. Quando é questionado do porquê deste documentário diz «Foi tudo uma desculpa para conhecer Saramago». E é esta gana de querer conhecer mais que faz deste filme um dos melhores do ano. Um trabalho sensível, notável, cheio de humor e paixão. Não obstante os problemas de financiamento - mesmo que complementados pelo apoio de duas grandes produtoras internacionais (O2 e El Deseo) - o trabalho incansável de quem nunca desistiu vê-se agora recompensado. É provavelmente um dos melhores e mais comoventes filmes da década, um dos melhores portugueses. A beleza e inteligência frui na montagem de Cláudia Rita Oliveira e contribui para engrandecer esse sentimento de reconhecimento perante esta notável obra.

«Eu tenho ideias para romances. Ela tem ideias para a vida. E eu não sei o que é mais importante» dizia Saramago. Pilar respondia «Eu acho que é a vida». E mesmo que este documentário não seja o mais importante do mundo, ele é tão grande como a vida.



Classificação:

9 comentários:

  1. Uma obra fenomenal, um verdadeiro hino ao amor e à vida...

    "É provavelmente um dos melhores e mais comoventes filmes da década, um dos melhores portugueses."

    Frase acertadíssima... Apenas tirava o provavelmente...

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  2. Nossa! Gostei muito. E meus olhos ficaram bem "abertos" e muito "lúcidos" durante as duas horas e pouco de documentário.

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  3. Eu já vi o filme duas vezes. Adorei mesmo.

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  4. Talvez tenhas razão, eu é que não gosto de ser definitivo. :P Mas concordo contigo.

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  5. Adorei este texto, bem, ainda me deixou com mais pena de ainda não ter conseguido ver o filme. Gostei mesmo. Abraço.

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  6. Armindo Paulo Ferreira21 de junho de 2011 às 16:00

    Vi pela TV e pensei que iria ser uma daquelas coisas super aborrecidas até mas... foi maravilhoso, hipnotizante, surpreendente, amargurado, ternurento, cheio de amor, cheio de vida, paira a morte, gracioso, engenhoso nas várias mise-en-céne que produz mesmo sendo apenas um documentário, cinemática, crítico, político (Saramago certeiro sobre a Hillary Clinton), sedutor e muito poético... soube a pouco quando chegou ao fim.
    Muito bom!
    Era tudo verdade mesmo do tanto que badalavas!
    Tinhas toda a razão, Tiago!

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  7. Fico feliz quando me dizem isso, precisamente porque muitos não vêem o filme com a ideia que é mais um documentário maçador sobre a obra de Saramago. Pelo contrário: é uma bela e ternurenta história de amor. Fico sempre comovido quando (re)vejo... Ainda bem que gostaste. Uma dica: o DVD está na FNAC apenas por 9,99€. :)

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  8. Bom filme, especialmente a partir do meio. Parece-me que há 1ª parte falta um pouco de focus e o filme divaga. De qualquer forma, parabéns pela análise. Também me parece que se trata do triunfo do Amor sobre a Morte...

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