sexta-feira, 29 de julho de 2022

Cyrano, por Eduardo Antunes


Título original: Cyrano (2021)
Realização: Joe Wright
Argumento: Erica Schmidt

É na dissonância entre a franca qualidade da obra original e a tentativa inusitada e preguiçosa de aplicação de uma determinada sensibilidade moderna que não nos conseguimos ligar a uma história tão simples na sua eficaz aplicação da palavra, como se lembrando o público do quão longe estamos de regressar a uma época de subtil expressão literária e representatividade de temáticas actuais segundo personagens universais na sua caracterização.

Desde logo existe um peso sob o qual a opção de adaptar esta história enquanto musical é inevitavelmente medida à actualidade. Face Les Misérables ou Hamilton, exemplares icónicos na transposição de momentos históricos a um contexto musical, tecemos à partida as nossas próprias expectativas às possibilidades que essa sinergia pode criar.
E embora não conhecendo a peça de teatro originária, é essa própria (inesperada) ideia de um musical que aqui abre conflito com a própria narrativa, tão apegada e assente –na ideia e meio originários– à utilização das palavras, que as por demais vulgaríssimas letras das canções para aqui compostas, não só desrespeitam a origem a que se associam, como não ilustram os sentimentos das personagens tanto quanto as palavras da obra conseguem fazer.

Pois a escolha de um musical faz-se na falta de outra possibilidade de expressão sentimental pelas personagens, aqui precisamente injustificada por a palavra ser meio essencial e directo de expressão destas –de forma oral ou escrita– ao longo de toda a narrativa. Assim, a presença das canções nesta adaptação apenas retrai a nossa atenção das implicações emocionais, onde a equipa espera que a música o faça alternativamente.
Para além de que a encenação e realização dos momentos musicais é, nesses momentos, francamente desinspirada. Se a concretização deste esforço cinemático durante uma altura de vastas restrições não permitia uma utilização de maiores recursos, teria sido preferível qualquer outra alternativa à paupérrima tentativa transposta nesta realização. Talvez regressando à ideia de encenação já anteriormente utilizada pelo realizador na sua anterior adaptação de uma obra clássica.



Pois nem as raríssimas coreografias de grupo aqui relembram a maravilhosa encenação da primeira dança de Anna e Trotsky na vastamente superior e mais inspirada adaptação de Wright de Anna Karenina. Vemos apenas simples movimentos de braços pelos dançarinos em ambientes realistas com os quais nada se ligam ou fazem por transpor. Onde, nesse outro filme, a encenação fazia parte de toda a realização, a dos momentos musicais aqui reconhece-se desprendida de toda a restante encenação.
Pior, no momento climático da narrativa, onde o envio das tropas para a guerra poderá significar à protagonista a perda do seu amor, o enfoque numa música que ilustra a história de apenas três soldados numa gruta retira qualquer nuance e escala que, de resto, essa cena possui e deveria transpor ao espectador.

Mas mesmo para lá desta opção estilística, reconhece-se de alguma forma a tentativa de adaptar esta história de época a certas sensibilidades modernas, numa tentativa de igualmente "actualizar" as questões da peça escrita. Que, para lá da mera aparência (através da escolha do elenco no que toca aos seus dois protagonistas masculinos), não resvala em qualquer aspecto para a narrativa. Pois se a ideia não é ilustrada pela própria história, ambas chocam aquando do nosso entendimento do preconceito pretendido ilustrado, face uma adaptação que não o reconhece na sua narrativa.
Escolhe, antes, aplicar essa ideia superficialmente, acabando por, antes e ironicamente, confirmar a mensagem original da obra quanto à valorização superficial das coisas, ao invés de localizar a história num ambiente moderno (como fez Romeo + Juliet). Onde depois as mudanças poderiam-se fazer sentir mais presentes e, consequentemente, impactantes, por na obra original eventualmente não resultarem.

Assim, aquilo que poderia ter servido como um revivalismo de uma obra de extremo cuidado e beleza na sua escrita acaba por nos demonstrar o que a falta de firmeza e intenção no argumento e realização pode causar ao que se pretende transpor, podendo o público perder por completo a nuance da qual os autores pretendiam imbuir a obra original, caso o interesse em a conhecer para lá da actual adaptação não se mantiver. Aconselho antes a (re)visitar a adaptação francesa de 1990, que fará por encher melhor as medidas de quem pretende esta história conhecer.



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