segunda-feira, 30 de agosto de 2021

O Falcão e o Soldado do Inverno - Temporada 1, por Eduardo Antunes


Título originalThe Falcon and the Winter Soldier (2021)

A segunda série adjacente ao universo cinemático da Marvel pretende instaurar finalmente duas das suas personagens mais secundarizadas como passíveis de almejar o seu próprio projecto. Atingindo esse objectivo, fá-lo infelizmente através de fraca escrita, a qual foca os seus mais interessantes pontos narrativos apenas superficialmente, no que poderia ter sido uma arrojada serialização.

Falcon é uma personagem bem desenvolvida agora, para lá da personalidade simétrica à de Steve Rogers. Sabemos o seu passado, conhecemos o seu contexto, a sua família, e serve mesmo de veículo para "responder" (ao menos, apontar) a certas questões relativas ao estatuto profissional destes defensores que provavelmente nunca consideraríamos no contexto destas histórias. Passa a ser uma personagem tridimensional, passando a audiência a entender mais profundamente porque Steve o via de facto como um companheiro e "herdeiro" à altura, para lá das brevíssimas interacções entre ambos nos poucos momentos em que contracenaram nos filmes.

Mackie empenha-se na transposição do conflito interno desta personagem. Conflito não em relação às suas convicções, mas às decisões que toma ante as convicções de outros. Numa cena muito bem conseguida, na simplicidade e subtileza da sua encenação, Sam olha para o escudo, após ter sido manchado literal e figurativamente, e entendemos o peso que ele próprio sente por ter entregue aquele ícone a uma sorte que não conhecia. Não pelo escudo em si, mas pelo que ele representava, para lá dos EUA, dos valores implícitos por que Steve Rogers lutava. Antes, o peso de ter posto de parte o que Steve representava para ele e, mais, por sentir naquele momento que, de facto, quebrou a confiança do único que pôs a confiança em si, com a decisão que dissera ter achado a correcta.


E mais tarde, sendo lembrado da posição da sua etnia no país, fica talvez ainda mais claro porque ele deu o escudo ao governo. Talvez porque, mesmo acreditando na sua dignidade para empunhar o escudo, sabia inconscientemente que o país não o tomaria como tal. Questões que conseguimos levantar em grande parte pela interpretação de Anthony Mackie, grande e merecido suporte de toda a série, e que no final nos faz perceber que a sua opção de tomar o testemunho não passa por uma cumplicidade com o sistema governamental que tomou as decisões que levaram ali, mas antes uma forma de mudar a percepção do que significa aquele símbolo, do que pode ser o seu derradeiro legado. Que poderia ter sido o título da série. O legado do Capitão América.

Até porque, a meio da série, é-nos apresentado um novo "Cap", um escolhido pelo governo americano. Um verdadeiro herói ao típico olhar norte-americano, soldado veterano condecorado. Como que o ilustrando enquanto a escolha óbvia após Steve Rogers, preparando-nos para a inevitável falácia de tal afirmação. E no entanto, não sentimos a inteira dedicação às ideias propostas com essa decisão. Pois Walker é, desde a primeira cena, ilustrado como herói, especialmente por Lamar, sua constante companhia.
E quando Walker utiliza o escudo num acto injustificado face a presença da personagem numa terra que não é a sua, deixando para o episódio seguinte o que julgamos passar a ser o verdadeira enfoque da série a partir de então, a situação é lidada através de um confronto corpo-a-corpo com os protagonistas, apenas para sinalizar a transição da posse do escudo para Falcon. 

Existe um julgamento para Walker, mas nenhuma consequência parece definitiva. Os seus actos gritaram vergonha para o país, mas no final tem direito a empunhar o seu próprio fato (e alter-ego), na mesma sala onde lhe retiraram o título, apenas para ser transposto para o ecrã mais uma personagem das páginas desenhadas, mesmo que na presente história não se justificasse essa inclusão. Sai basicamente impune das acções extremas que tomou, quase redimido pela sua participação nos eventos finais lado a lado aos titulares protagonistas, e portanto torna-se evidente o seu papel como um obstáculo a ser ultrapassado e, depois, como sinal para inclusão futura noutras produções, e nunca como uma temática séria. E talvez bastasse não mais que um par de episódios para deixar marinar algumas destas ideias sem tão abrupta transição.

Muito disto se denota pela própria escrita, em muitos momentos desajeitada, desde logo denotada em algumas interacções e diálogos que deixam uma sensação de embaraço, como se tivessem sido de alguma forma improvisadas pelos actores no momento, mas nunca de forma natural.
E muitas vezes reconhecemos francamente a falta de subtileza na forma como ilustram os temas abordados. Como os milhentos enquadramentos aproximados do escudo, ou quando, aproximados mais do final, preparando-se Sam para empunhar o escudo, é tratado pelos sobrinhos pelo seu título familiar. "Uncle Sam"... Não ficam dúvidas para interpretação de que está em causa o legado que o Capitão América representa para o país, e o que paradigmaticamente significa a sua passagem para as mãos da personagem de Mackie, como, aliás, demonstra o óbvio discurso de Falcon no último episódio.

E, da mesma forma, ainda que nos dois últimos episódios a história se torne mais interessante pelas questões que levanta para e sobre as duas personagens titulares, toda a primeira parte sente-se bastante genérica, ainda que também questione algumas das mais interessantes consequências (sociais e políticas) deixadas em aberto pelas opções narrativas de Avengers: Endgame. Mas a criação de mais um punhado de revolucionários que lutam por uma causa justa, considerados no entanto terroristas pelo extremo das suas acções, acaba por invalidar o esforço de abordar os acertados argumentos dos antagonistas face governos que preferem circundar ou esconder os problemas.

Assim, o segundo esforço televisivo da Marvel fica demarcado por uma forte tentativa de ilustrar novos protagonistas, entranhados no entanto numa série de opções narrativas que preferem anunciar brevemente os seus temas por entre sequências de acção, em vez de aproveitar a sua bem sucedida plataforma para transpor mais aprofundadamente temáticas relevantes, apesar das dicas nesse sentido. Preferem o meio termo, seguro mas descomprometido com as suas próprias opções argumentativas.



Sem comentários:

Enviar um comentário