sábado, 25 de maio de 2024

Furiosa: Uma Saga Mad Max, por Eduardo Antunes


Título original: Furiosa: A Mad Max Saga (2024)
Realização: George Miller
Argumento: George Miller, Nick Lathouris

Seria sempre inútil a esperançosa espera pelo mesmo sentimento que nos arrebatou naquele (parece) longínquo ano de 2015. Antes, o que George Miller aqui nos oferece é um complemento à sua obra-prima anterior, que não tanto nos pretende oferecer a mesma frenética envolvência, mas antes oferecer um outro grau de complexidade à segunda (ou primeira?) protagonista que vingou o percurso pela Estrada da Fúria.

A principal dificuldade que Furiosa tinha que suplantar era aquela que enquadrava o seu lançamento. A expectativa do seguimento de um filme que significou tamanha importância na altura em que surgiu e que será lembrado como um dos mais emblemáticos e extremos exemplos da aplicação da linguagem do cinema como meio audiovisual de contar narrativas.
Expectativa à qual nunca seria permitida o seu preenchimento, por corresponder a uma eventual repetição da fórmula que vimos resultar há nove anos. Expectativa que se poderia transformar num reconhecimento da mesma estética por necessidade de evocar o filme antecessor, sem no entanto a "novidade" que Fury Road trouxera. Receio, aliás, que (me) surgiu ao ansiosamente visualizar o primeiro vídeo promocional. Mera recordação daquele outro momento cinematográfico, sem o impactante sentimento que esse evocara.



Por isso, é do maior mérito que George Miller tenha entendido não poder corresponder a essa expectativa e, assim, ao invés, construiu uma narrativa muito diferente, estruturalmente, do filme que pretende enquadrar. A história de Furiosa assemelha-se muito mais a uma epopeia –comparações foram já bem feitas com Ben-Hur–, dividida por capítulos que não deixam, apesar disso, o filme perder a sua eficaz continuidade e coesão. 
O ritmo da narrativa é, portanto, muito distinto do filme de 2015, optando quase por ser uma sua antítese. Não tanto uma quase ininterrupta e urgente incursão pela busca de redenção, antes uma lenta combustão providenciada por uma crescente procura por vingança. Exercício quase hitchockiano, por sabermos já as eventuais consequências e repercussões, mas não sabermos como ou quando exactamente se efectivarão. A própria composição musical [de Tom Holkenborg], remetendo para os mesmos temas que já conhecemos de Fury Road, oferece aqui uma mais contínua sensação de inquietação que de climático frenesim.

Será, por isso, pena que não se permita semelhantemente a narrativa, nos eventos que ilustra, desviar-se (ainda) mais do filme para o qual, necessariamente, remete. Foca o segundo capítulo muito do que já conhecêramos, construindo o universo como para quem entre agora pela primeira vez. Vemos inclusivamente legendas para cada localização, onde antes o universo era tão minuciosa e subtilmente apresentado. 
Dado ser uma prequela, estaria sempre implícita a eventual aparição de Immortan Joe e toda a restante envoltura, mas teria assumido a presença da personagem interpretada por Hemsworth como o inteiro realce desta fase da jornada de Furiosa, assumindo-se Immortan Joe como parte do filme "seguinte" –cujo início nunca precisaríamos de ver. Os planos finais e créditos parecem vincar o que o próprio subtítulo receosamente lembra, a sua conexão com o outro filme, e não se permite nunca ser "apenas" complemento para a restante história.

Nos capítulos seguintes, no entanto, ganha o filme o seu verdadeiro carácter, e adiciona também a Dementus uma outra dimensão, para além do objecto da vendeta da protagonista. Torna-se actor decisivo na desenvoltura política e social da organização desta 'Wasteland'. Não é ele, no entanto, fito para tal papel na organização estabelecida, apenas direccionado pela sua própria ganância. Caricatura clara e desejada, demonstrando total desconsideração e impiedade, tão naturalmente pertencente a este universos de bizarrias iniciado em 1979; contraponto óbvio a Immortan Joe, interessado apenas em manter o controlo, na sua própria pervertida demonstração de empatia pelos seus súbditos, guiada senão pelos seus interesses. De cuja relação deste último com Furiosa nunca temos qualquer real vislumbre, percebendo ainda menos a sua inclusão, senão pela sua inerente presença nos eventos retratados. 



É no meio deste conflito que se insere Furiosa. Quase sem falas que a permitam sequer enquadrar-se nas maquinações por entre as quais não quer mas se vê necessitada existir, que a retêem longe do retorno à sua origem. Tivesse-se [o argumento] permitido um maior enfoque na ligação com Pretorian Jack, poderíamos melhor ter sentido essa relação e sua memória como elemento de transposição da mera retaliação sem demais objectivo que guia a sua personagem.
Teria sido uma melhor forma de enquadrar a fase seguinte da história [visível em Fury Road], após a (falta de) resolução, aqui, da sua vontade –como poderia alguma vez recuperar a sua usurpada infância… A memória da vontade pura de um único sujeito em contribuir para o seu retorno a casa afastaria-a de vez dessa insatisfatória expiação, para a eventual procura de redenção, e permitindo afastar mais tarde outros de semelhante destino –sob a figura das noivas de Immortan Joe.

Não deixa, ainda assim, Furiosa de ser aconselhada visualização, tenhamos ou não tido o prévio contacto com estas personagens há quase uma década. Não melhora o filme "seguinte" nem pretende fazê-lo, funcionando no entanto como uma peça acompanhante para o universo criado, e para a personagem que Charlize Theron tão eficazmente conseguiu manter impressa nas nossas memórias e, parece, das do seu originário autor. Merece ainda mais a atenção por nos manter o contacto próximo com um autor que, humildemente, continua a saber utilizar e elevar a linguagem do cinema para enaltecimento da narrativa que incorpora e, nunca em detrimento dela –como tantos dos seus mais jovens congéneres.



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