sábado, 12 de fevereiro de 2011

Com que Voz, por Tiago Ramos



Título original: Com que Voz (2010)
Realização: Nicholas Oulman

Com que Voz termina exactamente da forma como sempre se devia ter mantido: a revelar a química entre Amália Rodrigues e Alain Oulman. Porque aquelas imagens, que não são inéditas do grande público, de um ensaio do tema Soledad em 1989, revelam o que de melhor há em ambos, personagens idênticas com as mesmas qualidades e defeitos, grandes amigos - mas tímidos e por isso com uma pequena barreira entre ambos - e admiradores mútuos. Ensaiam a uma só voz um tema belo e riquíssimo e que a todo o instante revela o fascínio da sua relação: Alain Oulman parece falar a língua nativa de Amália. Até pode mais ninguém perceber, essa língua, mas entende-a ela. É como diz, perto do fim do documentário, a jovem Carminho, apontada como uma das mais talentosas da nova geração de fadistas que cantam nas casas de fado lisboetas: «O Alain é uma personagem que eu imaginei. É o espelho de um espelho, de um espelho. Um feedback de um feedback, de um feedback» e adianta ainda «Sempre sonhei como seria ter assim uma relação com um meu compositor».



Na verdade, a biopic de Alain Oulman seguida em ordem cronológica ao longo do documentário, funde-se quase sempre com a própria história de Amália Rodrigues. A sua relação com a mais importante fadista de sempre e a forma como revolucionou o seu repertório e o fado em Portugal. Alain Oulman era, de facto, um talentoso homem, obcecado pelo seu trabalho e que relega muitas vezes para segundo plano a sua família e vida pessoal. Visionário, levantou polémica ao colocar Amália a cantar os grandes poetas portugueses, como Alexandre O'Neill, Manuel Alegre, Ary dos Santos, José Régio e até Camões. Uma afronta para os puristas, mas uma revolução tanto ao nível do conteúdo como da forma, alterando aquele que era tido como o fado padrão e dando origem aos álbuns mais inspirados da fadista. Temas icónicos como Abandono, Gaivota, Soledad e Com que Voz - este último que dá nome ao documentário - são dos mais belos do seu repertório e fruto da composição de Alain Oulman.

Alain Oulman é apresentado aqui em jeito de homenagem, com o olhar de carinho de um filho fascinado pela carreira de seu pai. Descobre-se uma vida fascinante - narrada pelas suas irmãs, ex-mulher e tantos outros amigos e colegas que tiveram o privilégio de cruzar a sua vida com a dele - que se destacou especialmente pelo seu sentido e dom musical, que se revelou nas mais diversas áreas. O compositor, o encenador e o editor. Facetas eclécticas de um homem abrangente e único, amado por muitos - embora tenha tido problemas com o Estado Novo dada a sua faceta militante e anti-fascista - e obviamente reconhecido pelo seu talento. O homem que até quando traduzia de hebreu para francês - com um interlocutor com que falava em inglês - necessitava de ouvir o som das palavras originais para lhes conseguir atribuir o verdadeiro significado. O homem que tocava ao piano, que dividia as sílabas até dar às palavras a entoação correcta. O homem que amava a música.



A Nicholas Oulman talvez lhe falte um distanciamento crítico da obra que criou, mas dá-lhe sempre um comovente tom, um olhar de fascínio que fica bem. Com que Voz tem como defeito o seu formato, claramente televisivo, com demasiadas pessoas a falar em discurso directo, sucessão de temas, de personalidades, que nem sempre conseguem equilibrar a obra da melhor forma. As imagens de arquivo, algumas delas bastante interessantes, tornam-se excessivas - recorde-se Fantasia Lusitana (2010) como uma forma exímia de o fazer. Longe de o recriminar por isso, mas numa altura em que o documentário como género tem tido honras de estreia nos cinemas portuguesas e depois de obras como Fados (2007), Ruínas (2009), Fantasia Lusitana e José e Pilar (2010), o seu enquadramento televisivo fá-lo perder por comparação.

Problemática ainda quando falta a Com que Voz o ímpeto e a força de distanciar a imagem de Alain Oulman da imagem de Amália, principal quando a ideia seria dar a conhecer também outras suas importantes facetas. Irónico aperceber-se que é precisamente nesses momentos que o filme tanto ganha como perde força, simultaneamente. É curioso que até no seu casamento com a sua ex-mulher, conhecida no Lisbon Players, Amália Rodrigues detém honras principais e a sua esposa fica sozinha a receber convidados. Retrato também do problema do documentário.



Contudo, Com que Voz é uma interessante revisão e reconhecimento da obra e vida de Alain Oulman, homem de inúmeras facetas, homem de talento e paixão, homem de visão. Não deixa de ser uma excelente homenagem de um filho para o pai e um modo de não se deixar perder nunca estas imagens e estes factos. Um olhar íntimo e aproximado de um grande homem.

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