Quase um ano depois de termos estado à conversa com Vicente Alves do Ó, a propósito da sua estreia na realização de uma longa-metragem em Quinze Pontos na Alma, voltamos à conversa com o argumentista e realizador português acerca de um projecto mais ambicioso: Florbela que estreará um pouco por todo o país, a partir de 8 de Março, com Dalila Carmo, Ivo Canelas e Albano Jerónimo. O que mudou no espaço de um ano? «Aprendi imensa coisa. Todo o processo de filmar e pós-produzir um filme ensina-nos imenso. O cinema é uma arte tão permeável junto do público, das opiniões. Foi muito importante ouvir o que as pessoas sentiram, viram, pensaram. Foi muito importante fazer uma espécie de esboço mental dum filme que, no fundo, é tremendamente pessoal. Mas acima de tudo, o que aprendi foi perceber melhor o caminho que estou a fazer, as questões que coloco nas histórias que conto. Acho que todos os realizadores têm assuntos ou temas recorrentes, verdadeiras obsessões nas suas obras, que volta e meia os assombram e essa clarificação começou com tudo o que aconteceu com o "Quinze Pontos na Alma"».
Essa aprendizagem deu lugar à proposta de um argumento sobre uma das poetisas mais famosas do nosso país e além fronteiras, Florbela Espanca. Vicente Alves do Ó justifica este novo trabalho ao ter sentido algum preconceito por durante muitos anos ter trabalho como argumentista (Monsanto, A Filha, Kiss Me), especialmente por pessoas que nunca se questionaram do motivo que o levou a tornar-se realizador. «Como se isso fosse uma classificação eterna, definitiva na minha vida. Esse preconceito e essa forma de "engavetar" toda a gente neste país, magoou-me muito». Foi então num jantar entre amigos que ao falar-se sobre algumas figuras históricas portugueses percebeu que «a Florbela é vista de uma forma simplista e catalogada. Também ela foi e é vítima de um certo preconceito. Essas visões redundantes deram-me vontade de pesquisar, de querer saber mais sobre ela e o que fui descobrindo cresceu em mim e deu-me a vontade urgente e necessária de fazer um filme sobre ela: ao fim ao cabo, escrever sobre Florbela era escrever sobre nós - sobre os portugueses». Todo este processo de pesquisa não foi fácil ou não fossem as várias biografias de Florbela Espanca contraditórias ou omissas em diversos aspectos da sua vida e que poderiam limitar a visão do seu trabalho e da sua figura enquanto mulher. «Voltei a ler a sua obra - que já conhecia desde a adolescência, fui ler as biografias que se fizeram sobre ela e as cartas. Especialmente as cartas. As cartas deram-me uma visão muito interessante, complexa, fascinante, sobre uma portuguesa que apanha o fim da primeira república e que ainda vive momentos de grande liberdade na sociedade portuguesa antes da instauração do Estado Novo. Esta modernidade, que sinceramente, ainda nos custa a viver hoje em dia, é extraordinária e a Florbela viveu-a em pleno, apesar do preço que pagou por ela».
Contudo, Vicente Alves do Ó pretendeu fugir ao cliché da biografia de vida de uma figura histórica, seguindo a sua vida desde a infância até à idade adulta, destacando apenas os episódios principais da mesma. Pelo contrário e querendo dar-lhe alma, explora a fase da vida de Florbela onde esta atravessa um período onde deixa de escrever, querendo procurar todo um potencial dramático da história. «A vida da Florbela é plena em atribulações, mas eu precisava de me concentrar num momento que expressasse toda a sua complexidade e personalidade. Queria fazer um filme que se aproximasse da pessoa e não da figura histórica. Não queria fazer um filme onde apenas apontasse os acontecimentos importantes da sua vida - para isso fazia um documentário. Este filme é a minha visão da Florbela, claro que alicerçada em factos e documentos verídicos, mas não deixa de ser a minha visão sobre a vida dela e este período estranho, secreto, era particularmente tentador. Eu adoro escrever, não consigo imaginar a minha vida sem escrever e quando percebi que ela passou por esse momento - de ausência, vazio criativo - fiquei fascinado e interrogado. Como se vive sem escrever quando escrever é o fundamento de tudo?». Para o filme, inspirou-se num pequeno conto chamado O Aviador de uma antologia de contos da autora, intitulada Máscaras do Destino. No conto, a poetisa relata o acidente que vitimou o seu irmão Apeles Espanca, em 1927, recriando uma visão mítica da morte do irmão amado. Para Vicente «a sua linguagem é tão rica, tão cheia de adjectivação, metáforas, tão excessiva, que ficamos com a sensação que ela procura, através da escrita, resgatá-lo da morte e isso toca-me profundamente». O realizador quis levar essa visão poética também para o cinema, recriando o mundo interior da poetisa e filmando algumas cenas de uma forma menos literal e com alguma inspiração na fantasia. «Foi um desafio perigoso. Podiam correr muito mal por questões técnicas. Mas construí o argumento do filme de forma a viver sem elas, caso corressem muito mal. Felizmente tive uma equipa fantástica - Luís Branquinho na fotografia e a Irmã Lúcia nos efeitos digitais - pelo que tudo ficou exactamente como eu imaginava. Gosto muito de fantasia. Houvessem mais condições e não tenho dúvida que exploraria muito mais esses ambientes e narrativas. Vamos ver como evolui o cinema português e os meios para o fazer». Contudo e apesar desses momentos houve uma preocupação em recriar aquela época de uma forma real. «Existe sim a vontade de normalizar a época, ou seja, dar-lhe vida, sem que pareça falsa. Filmar época é sempre um risco. Fica tudo com ar de cartão postal. Falso. Quis e tentei acima de tudo dar-lhe um ar mundano, como se fosse hoje».
Para o papel de Florbela Espanca, o realizador escolheu a actriz Dalila Carmo que também havia colaborado em Quinze Pontos na Alma. A escolha não foi difícil. «Gosto de trabalhar com actores que se entregam, que sentem e que possuem uma grande inteligência. A Dalila é uma grande actriz, tem semelhanças com a original, o que me facilitou a vida no momento de escrever. Gosto de ter um rosto quando escrevo as personagens, porque humaniza os diálogos, as reacções, as acções. A Dalila é uma Florbela perfeita na sua complexidade, loucura, aventura, exuberância e ao mesmo tempo, é tão tão portuguesa».
Para apresentar o seu trabalho, Vicente Alves do Ó pretende recriar um processo semelhante ao conseguido por O Filme do Desassossego, de João Botelho, em 2010 e 2011. Uma espécie de tour com o filme pelo país, mesmo em cidades do interior, influenciada pelos resultados de bilheteira do cinema português. «Se pensarmos que o filme mais visto do ano - português - fez apenas 20 mil espectadores, quando já andámos perto dos 300, 400 mil, é sinal de alguma coisa e não me parece que seja apenas da crise. Precisamos de nos aproximar das pessoas, do país, quebrar as regras da distribuição e seduzir o público a ver cinema português. Antes de mais, faço filmes para as pessoas - essa é a minha maior ambição, que os meus filmes sejam vistos». E quando questionado se esses planos vislumbram também a sua internacionalização apenas arrisca um «o segredo é a alma do negócio». Entretanto o projecto Florbela cresceu também para uma minissérie a ser exibida pela RTP1 e dividida em três episódios: «trata de um objecto diferente do filme, com material novo e sem material que está neste filme. Portanto, são coisas diferentes com intenções diferentes. O filme é uma aproximação da pessoa, a minissérie é mais um biopic clássico. São objectos muito diferentes».
Sobre o estado actual do cinema português, admite que «o Estado tem a responsabilidade política de proteger o cinema e os cineastas e isso não passa apenas pelo financiamento, passa também pela imagem que se projecta e que difunde. Se um governo português é o primeiro a desresponsabilizar-se de todo e qualquer apoio ao cinema e às artes, como podemos depois pedir às pessoas que o apoiem? Não podemos. Há uma questão de honra, de respeito e dignidade. Podemos não gostar de todos os filmes, podemos não compreender, aceitar, mas devemos ter respeito e orgulho nos nossos cineastas e isso começa pelo reconhecimento do Estado». E não se coíbe de apresentar sugestões sobre «uma lei que promova o mecenato, que promova o investimento não só na produção como na divulgação e na educação de novos públicos. Acho que se discutem demasiado os subsídios e há outras questões fundamentais para que o cinema exista de forma saudável junto do mercado e das pessoas. Sobre se a produção será melhor ou pior, é mais subjectivo, mas acima de tudo, acho que o cinema deve primar pela diversidade».
Entretanto e até à estreia de Florbela, Vicente Alves do Ó andará ocupado. Mas admite: «Tenho sempre muitas ideias. Umas escritas, outras na cabeça». E mesmo com um futuro tenebroso sobre os nossos ombros, resiste. «A seguir veremos o que acontece, mas certamente irei filmar, com apoios ou sem, mas irei filmar. Lá está, não consigo imaginar-me já sem filmar».
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