segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Road to Nowhere - Sem Destino, por Carlos Antunes


Título original: Road to Nowhere
Realização: Monte Hellman
Argumento: Steven Gaydos
Elenco: Shannyn Sossamon, Tygh Runyan, Cliff De Young, Waylon Payne e Dominique Swain
Editora: CLAP Filmes

O noir de Monte Hellman retrata um atmosférico mistério que se começa a traçar num filme (o filme dentro do filme) a partir de um outro, idêntico em tantos aspectos mas a que falta o que o novo mistério pode agora trazer. Em particular, um final plausível e, eventualmente, um fim de ciclo para alguns dos envolvidos na tragédia dos dois amantes suicidas.
Um noir que se joga no novo espaço reservado aos homens de intenções inexactas e de índole moldável, o cenário de um filme. Um cenário em que a reinvenção de uma personagem vem criá-la de novo, substituí-la e fazer esquecer a verdade. Porque o mito que hoje se filma é a verdade que amanhã se recorda.
Aqui a mulher fatal interpreta-se por duas vezes, fora e dentro do filme que estão a tentar realizar, e levará a que dois homens - ou mais dois homens, dependendo do quanto se creia na sua interpretação - caiam obcecados.
Um investigador de seguros que, como um velho polícia, guarda o caso de Velma Duran em aberto na sua própria vida. E o realizador que encontrou o milagre que todos desejam, uma actriz que é mais fiel do que a própria mulher que interpreta.
Ambos querem que ela seja mais do que uma actriz a incorporar uma sedutora mulher, querem que ela seja a mulher que deveria estar morta mas agora lhes ocupa os olhos.
Por isso um fará dela vítima e outro fará dela ameaça (ao seu trabalho de realizador, se nada mais) e ela persistirá em ser a mulher fatal que foi outrora ou que é agora ou que será, de futuro, nas imagens captadas.
Os contornos deste thriller são perceptíveis e a sua forma é muito mais inteligente do que é costume encontrarmos no ecrã. Sobretudo porque funciona em torno da transformação da identidade, da escolha que é a nossa percepção de e para os outros e dos limites em que ficção e realidade se deixam de confundir para que uma passe a substituir a outra.
Não sendo labiríntico, é um corredor que se percorre tendo vislumbres das intersecções que a ele chegam ou dele partem. Esses são caminhos que levam a olhar o filme, mesmo o Cinema, pelo lado de fora, dando atenção aos vários papéis de quem se mexe no interior da sua construção e até mesmo do nosso ao vermos.
A sua intenção não é confundir o público. Pelo contrário, há opções que encaminham para um entendimento, opções que só podem vir de uma intenção de amparar quem vê o filme. Mas ao explorar a substituição da realidade pela ficção - através da construção da ficção cinematográfica, ainda para mais - Monte Hellman não consegue evitar que esse tema se expanda para lá do filme dentro do filme e para o próprio filme.
Aliás, deseja-o abertamente em certos momentos pois o filme torna-se também numa visão do seu próprio trabalho - no limite, do trabalho de todos os realizadores e dos seus colaboradores: argumentista e actores, sobretudo.
São opções como a de usar Cliff de Young para interpretar tanto Rafe Taschen como o actor que lhe dará vida no filme. Ou a de dar um vislumbre de uma realidade filmada através de um telemóvel para encontrar a equipa de filmagem que deveria estar sempre ausente da nossa percepção.
Qual é a ficção e qual é a realidade pode ser menos difícil de assimilar se aceitarmos que há duas realidades e duas ficções e que, perto do final do filme, estamos finalmente a olhar para Hellman.
Em que momento se confunde o filme que vemos com o filme que dentro dele está a ser feito é impossível precisar.
A feitura de Road to Nowhere tem uma precisão que vem da composição de Hellman e do ambiente que ele adensa em torno dos personagens e nos é transmitido. Através desses elementos, os dois filmes e as suas realidades trabalhadas existem em simultâneo e são indestrinçáveis.
Mas é vendo o filme ficcional a ser feito dentro de Road to Nowhere que nos apercebemos perfeitamente que tal como Mitch Heaven está fascinado pela interpretação de Laurel Graham, assim está Monte Hellman pela de Shannyn Sossamon, verdadeiramente bilhante.
Ainda que Hellman não perca a noção dos restantes elementos em jogo - e não perca (como Heaven) o sentido de liderança que negligencia os contra-planos por achar Laurel é suficiente para preencher todo o filme - não deixamos de ver em Mitch e Laurel os substitutos incorpóreos de Hellman e Sossamon.
Então, por mais perceptível que seja o thriller, a ressonância das nesgas que usam o filme como a linguagem mais apropriada a falar da construção de um filme prolonga-se e acrescenta camada após camada às releituras de Road to Nowhere.



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