segunda-feira, 5 de março de 2012

O Mundo no Arame, por Carlos Antunes


Título original: Welt am Draht
Realização: Rainer Werner Fassbinder
Argumento: Rainer Werner Fassbinder e Fritz Müller-Scherz
Elenco: Klaus Löwitsch, Barbara Valentin e Mascha Rabben
Editora: CLAP Filmes

O Mundo no Arame persegue a mesma questão que levantaram os filósofos gregos e que promete ser eterna sobre qual a essência da matéria que nos constitui.
Quão real é o mundo com que nos ocupamos e quantas realidades haverá acima e abaixo de nós - e, daí, de quem seremos nós os deuses e quem será o nosso deus - são as questões em jogo neste filme, movidas desta vez pelo desenvolvimento extraordinário da capacidade dos computadores e pela criação de uma imensa realidade virtual.
Questões que a ficção tende a usar como sofismas para as suas mais variadas narrativas e, certamente, cada vez mais recorrentemente desde que a realidade virtual passou de tema a uso quotidiano.
Para Fassbinder não lhe interessa tanto tal uso da história. Há momentos em que a previsibilidade se torna narrativa e, ao contrário das perspectivas modernas do tema, o intricado não vem dos nós narrativos.
Vem, antes, da dedicação às discussões filosóficas e às explicações científicas que tentam preencher os espaços em branco do entendimento humano. São estas que preenchem o filme ao invés de cenas de acção - que existem e parecem determinadas em mostrar a ridícula irracionalidade da fuga como primeira escolha do comportamento humano - com maior recompensa para o espectador.
Como cineasta, os propósitos de Fassbinder são ainda outros, sobretudo interrogar o estatuto do homem no mundo moderno através da possibilidade de virtualidade que o argumento levanta.
O grande número de planos em que as feições dos personagens são entrevistas através barreiras de vidro ou vistas reflectidas em superfícies espelhadas (e muitas vezes multiplicadas) dão conta da maneira como o realizador opõem o ambiente ao seres que o habitam.
Fassbinder partiu de Alphaville para compôr, igualmente, um futuro a partir dos elementos estéticos do seu presente. Elementos que se faziam valer de uma concepção de modernismo que excluía cada vez mais a existência do seu interior e parecia negar a agregação da vida com a criação.
Neste mundo movem-se muitas engrenagens humanas cujo comportamento está marcado pela funcionalidade que lhes é imposta pelos interesses corporativos e que desvirtuam a essência do ser - outra forma de falha acerca do que é a realidade.
São vários os casos de personagens que estagnam como se esperassem por instruções acerca da próxima etapa do seu comportamento ou que debitam as suas linhas de diálogo como máquinas servis.
Contra tal ambiente asséptico Fassbinder usa a interpretação teatral e exageradamente melodramática do seu protagonista, Klaus Löwitsch.
Fred Stiller é uma fonte de angústia intensa e de comportamento desviante - embora sejam reacções naturalmente humanas na situação absurda que experimenta - no que é uma aproximação ao protagonista de um noir vivendo sob uma catástrofe eminente, que neste caso é existencial.
À sua volta Fassbinder dedica-se ao virtuosismo, movendo a câmara com eloquência através de arquitectura complexa e oferecendo-nos planos deslumbrantes.
Esta sua forma de filmar está, também, a chamar a atenção para si mesma, falando da mais importante das formas de realidade virtual que Fassbinder aborda aqui: o Cinema.
Se Fred Stiller é o seu alter-ego dentro do filme, então temos aqui um discurso profundamente pessoal de um grande cineasta que é o criador inconformado no seio de um mundo mecanizado e subjugado.
A sua realidade no que toca ao Cinema diz-nos, pois, que a tecnologia invasora não apagará a marca humana - o génio - que sublima o artificial e lhe dá vida. Uma mensagem ainda actual: para o mundo mas talvez até mais para os criadores de filmes.
Uma lição de Cinema - e que bela lição deve ter sido para quem viu a recente projecção em sala desta versão restaurada - vinda por via da televisão e pela mão de um dos últimos autores europeus essenciais.



Extras

Edição sem extras.

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