sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O Gebo e a Sombra, por Tiago Ramos


Título original: O Gebo e a Sombra (2012)
Realização: Manoel de Oliveira
Argumento: Manoel de Oliveira
Elenco: Michael Lonsdale, Claudia Cardinale, Jeanne Moreau, Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra e Ricardo Trêpa

A chuva lá fora, o frio insistente e aquela lâmpada trémula que insiste em iluminar quase que a prever a escuridão. E lá dentro, entre aquelas quatro paredes, a pobreza, as vidas à luz de umas lâmpadas a petróleo e sempre aquele desconforto claustrofóbico que começa como uma pequena impressão e que parte num rápido crescendo aprisionador. Um bocadinho como aquela sala de O Cavalo de Turim (2011), de Béla Tarr, naqueles olhares resignados, naquela escuridão, naquela pobreza extrema, naquela ventania desgraçada. Em O Gebo e a Sombra a visão dura e seca é semelhante, mas nem sempre as personagens se resignam ao silêncio, há uma que teima na ilusão, há uns que teimam na tentativa de mantê-la. E a pobreza e sempre o dinheiro. «Então o nosso dever é sermos pobres?» insiste a personagem. A pobreza existe, a desgraça existe e a infelicidade existe. Existem ali, ao mesmo tempo que a ilusão e a mentira, numa tentativa última de normalidade. Existem ali ao mesmo tempo que o dinheiro (aquele que tanta falta lhes faz, mas não é deles), naquela maleta onde se sente o cheiro a tecidos, a bolos, a poder. Ah o poder mandar nos outros. Sem dinheiro não há poder. E as personagens sempre ali, aprisionadas, naquele lusco-fusco, naquele frio e naquela infelicidade, enquanto lá fora chove e troveja, enquanto há uma sombra que paira sempre ali. Essa tensão constante: a falta de dinheiro aprisiona, mas a presença dele aprisiona ainda mais. E a câmara filma como um quadro, um enquadramento expressionista (poderosa aquela cena inicial e aquelas mãos no escuro, no abismo do fundo de uma rua) e sempre aquela tensão claustrofóbica entre quatro paredes e entre família e vizinhos. A realidade ali sente-se, a luz ali tão libertadora e subitamente tão aprisionadora. E as almas, em destaque naquela luz, e naquela ilusão sempre tão consciente, naquela resignação de vida, moral e pobreza.

O texto, de Raúl Brandão e adaptado por Manoel de Oliveira, passa-se no século XIX, mas é tão assustadoramente profético que impressiona. Sempre o dinheiro, a falta dele, a ganância e poder de uns, as limitações de outros. E a moral e a falta dela. E as contradições humanas. E o dinheiro. E «o dinheiro não se perdoa». E nós ali a assistir tão aprisionados quanto aquelas personagens, tão infelizes quanto elas e quando damos conta a lição que Manoel de Oliveira nos dá é enorme: é uma lição de cinema, é uma lição moral e filosófica, é uma lição do mundo e da vida, de quem tem mais de 100 anos e de quem sabe. E com isto, nós ali e um dos seus melhores filmes dos últimos anos. E a luz surge, o dia nasce e nós ali, tão presos e tão trémulos. Tão pobres e ao mesmo tempo tão ricos.


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