Entre a grande e icónica produção televisiva (sobretudo dos anos 80 e 90), existem muitas séries que marcaram a nossa infância ou adolescência (vida adulta de outros, também), mas temos que admitir que na sua grande maioria eram produções de qualidade inferior, no que diz respeito aos valores de produção, mas também à própria qualidade narrativa. Foi isso que em muito provocou o descrédito e o desnível que predomina em relação à superioridade do cinema, como produção de entretenimento. E embora sejam a meu ver formatos distintos, a verdade é que desde os anos 2000 que temos assistido a um progressivo aumento da qualidade dos produtos televisivos, alguns deles absolutamente nada inferiores a muito bom cinema. É por isso também que temos assistido nos últimos anos a vários realizadores, argumentistas e actores que trabalharam predominantemente no cinema a tentarem também a sua sorte na televisão, como forma alternativa de produção, em face à saturação do mercado cinematográfico.
Isto para dizer que este aumento de produção (e também da qualidade) tem deixado qualquer fã de séries - eu diria apenas, fã de bom entretenimento - imerso em dezenas de séries que estreiam anualmente. Algumas delas absolutamente descartáveis, mas outras verdadeiras pérolas. É por isso também que alguns dos canais de televisão, outrora sem conteúdo original, começaram a investir também na produção de séries originais, com resultados interessantíssimos e para alguns ainda desconhecidos. É o caso do
Sundance Channel e
Rectify que estreou este ano a sua primeira temporada de apenas seis episódios (e que pela amostra da temporada de prémios televisivos, permanece ainda abaixo do radar de muitos). Nada mais enganoso ou não fosse esta uma das melhores séries que estrearam este ano.
Rectify (qualquer coisa como "rectificar" ou "corrigir") parte de uma premissa interessante: a saída de Daniel Holden do corredor da morte onde esteve preso 19 anos, por acusações de violação e homicídio (ele próprio terá confessado o crime ainda em adolescente). Recentes provas de ADN utilizadas pelo seu advogado de defesa, levaram-no porém a ser declarado inocente e libertado da prisão. O primeiro episódio da série começa sobretudo com uma cena monstruosamente impressionante: momentos antes da sua saída, Daniel parece incomodado e sem saber como reagir aos novos estímulos - percebemos que estamos perante um homem claramente aprisionado, tanto física como mentalmente e será este o tema dominante de
Rectify.
Ao longo do série apercebemo-nos estar perante um fabuloso estudo da mente humana e das consequências dos nossos actos. Mais interessante ainda é a forma como nos apercebemos que, não importa o que as provas físicas revelam, quando as pessoas acreditam no oposto. É a partir dessa premissa que o espectador é levado para uma estimulante exploração da vida após quase duas décadas de cativeiro. De um adolescente para um homem adulto, de uma pequena cidade rural dos EUA dos anos 90, para uma sociedade completamente alterada (seja a nível tecnológico, de construção, de estilo de vida ou mesmo grandes mudanças familiares). A narrativa leva-nos constantemente e através da personificação genial de
Aden Young - como pôde este desempenho ser ignorado pela Academia de Televisão? - de um homem confuso perante estas novidades e que subitamente se sente preso por tanta liberdade (a grande ironia da vida).
A realização e narrativa, de um estilo lento e opressivamente melancólico (bela direcção de fotografia também!), nunca ignora o lado humano das personagens, oscilando entre as convenções do género familiar e o retrato de um homem desconectado da realidade e da sua família, numa sociedade fracturada e na sua maioria decididos que Daniel será efectivamente culpado - apesar das provas físicas em contrário. O mais curioso é que o espectador, apesar de pela proximidade às personagens, estar inclinado em crer na inocência deste homem, a verdade é que também ele não está completamente ciente disso e há vários indícios que mostram que poderá existir algo mais escondido nesta história. A par do talento monstruoso de
Aden Young - que na maioria das vezes, em silêncio, consegue revelar tanto ao espectador - existe um talentoso elenco secundário, sobretudo
Abigail Spencer e
J. Smith-Cameron, soberbas na subtileza com que interpretam as suas personagens. Ambas reagem de formas distintas ao regresso de Daniel a casa, mas ambas são também elas vítimas da pressão da comunidade que se opõe à sua libertação, mas também ao facto de nem sempre saberem como lidar com um homem que está sobretudo desconectado do mundo. Mais há muito mais a destacar sobre as dinâmicas das personagens, que são bem mais sobre a mesquinhez humana e o preconceito, do que de um mero confronto entre um ex-condenado.
Rectify é uma daquelas séries brilhantes, subtis e únicas sobre temas como a injustiça, o preconceito e o tempo, sempre com um lado muito humano e real - seja ele positivo ou negativo. Uma série que vai crescendo com o espectador, com uma profundidade incrível e que nos deixa a meditar durante muito tempo após o fim de cada episódio. Não precisando de grandes reviravoltas narrativas para isso, basta-lhe apenas mostrar a figura humana como ela e deixa o espectador assombrado por muito tempo. Uma série que aborda um tema reconhecível, mas de um ponto de vista completamente singular e distinguível. Poderá frustrar alguns espectadores por avançar e resolver pouco do arco narrativo ao longo da sua primeira temporada, mas a forma orquestrada com que conduz a acção é única.
Rectify (2013)De
Ray McKinnon
Sundance Channel
Temporada 1