Acabei de assistir a Cama de Gato e fiquei emocionado. Achei que apesar da sua curta duração, este poderia ser muito bem um dos mais interessantes filmes portugueses dos últimos anos. Dei por mim a rever o trabalho dos últimos anos da dupla João Miller Guerra e Filipa Reis, especialmente desde Li ké terra, premiado no Doclisboa 2010. Depois veio Orquestra Geração, a competir inclusive no Cinèma du Réel 2012, assim como Nada Fazi que venceu o prémio de Melhor Filme Português no Fantasporto 2012. Mais recentemente Fragmentos de uma Observação Participativa, a merecer estreia comercial e agora esta também dupla Bela Vista e Cama de Gato. Os prémios valem o que valem, mas o mérito fica. Estaremos talvez entre dois dos mais importantes jovens documentaristas portugueses da actualidade. Exagero? Talvez, mas também vale o que vale.
Marquei uma entrevista telefónica com o João Miller Guerra, estava entusiasmado. Cinco minutos depois da hora combinada, ligo. Manias. Atende-me uma voz simpática que me diz «Estava à espera que me ligasses» e eu parto para os elogios habituais, mas aqui mais sentidos. Responde-me com simpatia, humildade e até algum pudor. Parto logo para lhe perguntar o porquê de uma parceria tão evidente com a Filipa Reis, como e onde começou. Explica-me: «Nós começámos a trabalhar juntos em fins de 1999, inícios de 2000 para um programa na RTP2, chamado Triunfo dos Porcos. Era uma coisa que chamávamos a brincar, uma expressão de uma outra pessoa que trabalha connosco, de “bricolage televisiva”. Ou seja: uma construção feita por pessoas que não faziam a mínima ideia o que era trabalhar na televisão, de produções ou realização. Que tinham todas elas acabado de terminar os estudos, agora com um magazine de actualidades para fazer. Cada um trabalhava na sua área: a Filipa trabalhava na área de Economia, porque tirou Gestão. E eu fazia umas peças de dois minutos sobre objectos de design que tinham relevância na História, porque sou formado em Design de Equipamentos, Foi aí que conheci a Filipa e que começámos a trabalhar juntos. Depois seguimos para umas médias-metragens feitas na RTP e ficámos sempre amigos desde aí. Aliás, até vínhamos do mesmo colégio quando éramos mais novos, tínhamos alguns amigos em comum... Depois, em 2005 formamos uma produtora e em 2008 abrimos a Vende-se Filmes.»
Pergunto-lhe se planeia, num futuro próximo, um trabalho a título individual. «Nunca se sabe o dia de amanhã, mas nós para além do resto, também dividimos a própria vida, portanto para já não tenho nada planeado. Neste momento, temos reunido esforços e feito as coisas as dois, tendo corrido sempre bem e estamos contentes com este método».
Dia 7 de Novembro estreiam em sala, dois dos seus mais recentes projectos: Cama de Gato e Bela Vista. Ambos serão exibidos acompanhados de Um Fim do Mundo, de Pedro Pinho. Fazendo a retrospectiva do trabalho da dupla nota-se uma tema transversal à sua filmografia, algo com um cariz social muito forte. É algo que ambos procuram? «Eu acho que é uma coincidência. Não é uma questão que nos seja distante, mas de facto não tem sido um requerimento. As coisas acontecem um bocadinho, não vamos propriamente para os sítios à procura de assunto, mas o contrário. Acontece sermos chamados para determinado contexto e então aí ser preciso arranjar um assunto ou responder a um desejo de fazer um trabalho sobre esse tema.» Mas mesmo dentro dessa observação social, há também nos seus trabalhos uma forte tendência de fugir à regra. Por exemplo, em Bela Vista, o seu protagonista é o espaço e não as pessoas. «Lembrámo-nos de fazer o filme mais sobre a arquitectura, já que o projecto do Carlos Monteiro é bastante imponente e até um bocadinho utópico nesta coisa de pôr as varandas do lado de fora, para que elas próprias sejam os corredores de acesso entre as casas. Depois o que é que tinha acontecido ao fim de trinta anos? Efectivamente as pessoas tinham estado mais preocupadas em proteger-se e em ocupar aquele espaço, guardar a bicicleta, pôr o cão... e isso pareceu-nos uma óptima maneira de começarmos a entrar no bairro e para as pessoas começarem a habituar-se à presença da câmara. Muitas vezes usámos uma estratégia de filmar antes e depois explicarmos porque tínhamos filmado e pedir autorização para poder usar aquelas imagens. E aconteceu de tudo, coisas completamente inesperadas, outras combinadas previamente com as pessoas, para elas fazerem determinada acção que já tinha sido vista e portanto o filme acabou por ser mais sobre essa comunicação para o exterior e essa ocupação por parte dos habitantes dessas varandas e desses corredores de acesso».
O Bela Vista nasceu ainda de uma encomenda da Câmara Municipal de Setúbal, de onde faziam parte duas curtas-metragens de João Miller Guerra e Filipa Reis, assim como uma curta-metragem de Pedro Pinho. A ideia seria trabalhar os três projectos em conjunto, continuar a desenvolvê-los, com a participação das pessoas no bairro da Bela Vista. «A nossa estava pensada como uma ideia muito genérica de querer trabalhar com uma mãe adolescente, uma vez que a Filipa, ela própria também tinha sido mãe bastante nova, ainda na faculdade. E depois tínhamos esta estratégia montada, que nos parecia necessária para servir de projecto de aproximação ao bairro. O bairro da Bela Vista não é propriamente o local mais seguro da Europa, também não é de todo o mais perigoso, é bastante estigmatizado e um dos objectivos era trabalhar com a população e alterar a percepção exterior das pessoas de que o bairro é mau e perigoso. E usámos esse documentário como estratégia de aproximação, foi das primeiras vezes que começámos a passear-nos pelo bairro, não só para conhecer as pessoas e fazer um casting para conhecer pessoas e histórias para poder construir os filmes, como também começar a ter a câmara fora do saco e de poder começar a apontar para alguns locais potencialmente interessantes. E paralelamente a isso fomos conhecendo as nossas personagens e desenvolvendo o Um Fim do Mundo e o Cama de Gato.»
Faço nota do que já tinha comentado quando entrevistei o Pedro Pinho: os três filmes são um processo colectivo, com cenas que se repetem de filme para filme, mas de uma perspectiva diferente. «Num filme seguimos uma personagem, no outro seguimos a outra, mas a cena é coincidente. Isso foi pensado e escrito connosco e pelo Pedro, que escreveu os dois projectos e acho que foi um trabalho conjunto e no nosso entender, com tudo o que isso tem mais forte». Em todos eles, os realizadores trabalharam com as pessoas do bairro durante três meses. «Fizemos a coisa de forma intensa, alugámos uma antiga pensão desactivada e mudámos para lá a equipa. Vivemos muito com eles, vivemos muito no bairro, nas ruas, nos cafés e naquela realidade, para conseguir trocar uma maior riqueza de vivência com eles e eles connosco. Foi um processo de partilha incrível».
Questiono-me como é trabalhar com não-actores. Apesar do carácter quase documental que se evidencia aqui, o seu trabalho é tão natural, que parecem profissionais. Como é dirigir essas pessoas? «Elas não são dirigidas. São pura e simplesmente elas próprias, são super surpreendentes em muitas situações e dão muito mais do que aquilo que é pedido ou sugerido. Nós trabalhamos muito no método das coisas poderem ser ditas ou vividas, vamos supor, num café onde estamos a gravar, e depois isso é registado, vai para o guião e depois nessa altura é só voltar a esse tema. Claro que a cena não vai ficar igual ao que ficou na verdade, mas vai ficar parecida».
No caso de Cama de Gato, encontramos um filme protagonizado por uma jovem mãe adolescente de nome Joana. Não é uma personagem fictícia. Ela existe mesmo. Miller Guerra chama ao filme «uma ficção do real». Como a encontraram? «O processo de selecção foi bastante pacífico e possível através deste processo mágico que existe hoje em Portugal, até mais graças à televisão: escreves "casting" na parede e as pessoas fazem fila. No meio disso tudo apareceu sobretudo gente nova que se queria inscrever. Nós procurávamos pessoas para os filmes, pessoas para estar connosco durante o processo, mesmo que não fossem aparecer nos filmes como actores ou personagens. E foi uma coincidência incrível. Nós tínhamos esse ponto de partida de uma mãe adolescente, saberíamos que neste contexto seria fácil de aparecer e apareceu-nos a Joana, vestida com um lacinho tal como está no filme, com a sua malinha feita de coco. E apareceu-nos no casting convencida pelos seus pais, que achavam que ela, embora fosse mãe, tinha direito a experimentar fazer aquilo. Apareceu um bocadinho sem saber porque é que ali estava, mas conseguimos uma autêntica montanha-russa no depoimento da Joana. Pedimos para nos contar um bocadinho da sua história de vida e ela contou-nos, super-emocionada, basicamente aquilo que nós tentámos retratar na cena central do filme, em que ela conta a história do pai da filha e como tudo aquilo a afectou. Resumindo, aquilo que aconteceu foi que nós ficámos completamente apaixonados pela Joana. Acho que foi mútuo, ela ficou também muito curiosa connosco e portanto, daí partimos para a conhecer melhor, para construir o guião com a ajuda do Pedro». Recordo uma cena brilhante no final do filme, onde a personagem Joana quer sair à noite e deixar a sua filha, ainda bebé com a sua mãe. Esta nega-se a deixá-la sair, sem que esta antes fale com o pai. Há uma discussão, bem típica e bastante emocionante. Parece real. «Aquela é uma situação encenada, vivida ali no limite, que a mãe da Joana - que talvez seja dos três, a mais impulsiva - estava muito nervosa de fazer, mas tinha dito que sim, faria, porque gostava muito de nós. E a conversa começa com ela praticamente a perguntar "Já posso? Já posso? Já posso?" e o Vasco Viana ainda nem estava pronto e ela arrancou a cena. Foi ali um caos, mas depois correu bem. Aquilo que tínhamos pedido era para reencenarem uma típica discussão da Joana querer sair e eles não deixarem. Mas ganhou umas proporções tais que a Joana (como é seu costume também) emocionou-se, viveu aquilo como se fosse verdade e começa a soluçar, verdadeiramente nervosa, mesmo sabendo que não era real».
As estreias comerciais de cinema português não têm sido muitas nos últimos anos. Culpa de alguma redução na produção, mas também da dificuldade de estrear um filme nacional em sala. João Miller Guerra já conseguiu estrear recentemente outros dois filmes (Orquestra Geração e Fragmentos de uma Observação Participativa), mas diz-nos que foi «bastante suado, mesmo que no caso do Fragmentos de uma Observação Participativa tenha sido um convite que lhes foi feito para estrear a curta à frente de "Noutro País". Nos outros casos é um investimento completo nosso, com todo o investimento financeiro que isso acarreta, para depois ter muito poucos espectadores em sala, mas porque de facto acreditamos muito que tem que se dar tudo pelos filmes. Os filmes fazem-se não é para nós os consumirmos, é para as pessoas os verem. Estas personagens ou estas pessoas verdadeiras são absolutamente para serem partilhadas e são para que nós possamos aprender cada vez mais e desconstruir o outro, conseguindo quebrar essas barreiras das diferenças. Ter o filme no cinema é para nós, sempre que possível e sempre que é possível fazer esse esforço financeiro, um ponto de honra. No caso do Bela Vista e Cama de Gato é a mesma coisa, mas com uma fantástica associação da Zero em Comportamento e da Projectos Paralelos, a correr maravilhosamente bem. No caso da Orquestra Geração foi uma grande loucura, mas com muita vontade de fazer isso».
Em relação ao actual estado do cinema português, nomeadamente à receptividade do público, diz-me que pressente uma mudança. «Posso ser eu que sou um optimista, mas o cinema português tem sido bastante falado e reconhecido internacionalmente. E acho que as pessoas que estão mais próximas sabem o estado em que o cinema português está. A cultura é aquilo que fica, não me parece que seja possível vivermos sem cultura. O cinema faz parte da cultura e não me parece que isso possa ser ignorado durante muito mais tempo. E depois também vai aparecendo tanto sangue novo, gente tão talentosa a fazer coisas e com cada vez menos dinheiro. O único risco que existe nesta nova geração é que quem está só a assistir, pode achar que o cinema se faz com pouco dinheiro. Faz-se um cinema com pouco dinheiro, far-se-á outro com muito dinheiro. E ambos são precisos. Portanto não se pode ganhar este discurso que não havendo, então se faz desta forma. Mas o mais importante de tudo, eu diria que é não deixar de fazer. Temos dado sinais de uma enorme vitalidade. As pessoas, sobretudo mais novas, começam a relacionar-se de outra forma com o cinema português e a experimentar ir ver outra vez cinema português. O cinema português tem de ir para as salas, as pessoas têm de se habituar a vê-lo e ele tem que estar disponível, não se pode deixar de fazer. Conseguiu-se fazer isso em relação à música portuguesa, que há uns anos também não se ouvia nas rádios e não tinha a indústria desenvolvida como tem... Se calhar é um exemplo parecido: o cinema também tem que conseguir vingar comercialmente».
Não resisto em perguntar-lhe, apesar de algum cliché na pergunta, se se encontra a planear novos projectos. Diz-me: «Temos um projecto para o ICA, se ainda houver... temos ainda duas obras de encomenda, uma fase de preparação e outra em fase de conclusão: um filme sobre os 40 anos da escola do Arco e outro comigo, com a Filipa e com o Tomás Baltazar. E estamos também a começar um filme para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, que é sobre viver com o salário mínimo». Um tema social mais uma vez e digo-o. Ri-se: «Tentamos obviamente que seja também um filme de autor e não apenas a resposta a uma encomenda». Há portanto esperança ainda para o cinema português. Resta-nos aguardar.
Sem comentários:
Enviar um comentário