sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

"Joy": Primeiro dançaram, agora esfregam o chão

Por Miguel Stichini.


Os mais recentes trabalhos de David O. Russell fundiram os caprichos neuróticos dos seus primeiros filmes, cujo tom improvisado nos remetia para um cinema independente pós-Cassavetes, com clássicos de comédia peculiar desgastada desde o seu ressurgimento com The Fighter (2010) e Silver Linings Playbook (2012). Ambos os filmes apresentavam uma nova roupagem aos géneros drama desportivo e comédia romântica, respectivamente, enquanto tentavam permanecer sintonizado com o interesse do realizador sobre a intimidade familiar e protagonistas cujo desejos e personalidades são levados ao limite, tanto por uma instabilidade interior como por uma pressão externa. American Hustle (2013) foi uma tentativa ocasionalmente impressionante, inúmeras vezes desconfortável em alargar a sua paleta e prestar homenagem a alguns dos mestres da década de 70 como Martin Scorsese e Robert Altman, mas que nunca chega a encontrar o seu foco dramático.

O seu mais recente trabalho é uma celebração do kitsch suburbano, uma ode às obras de John Waters ou Michael Ritchie, mantendo Frank Capra no horizonte enquanto antepassado espiritual. A reputação de Frank Capra como o mestre do cinema clássico mais optimista e sério, superficialmente parece não ser o par perfeito para a política voluntariamente anárquica do trabalho de David O. Russell. No entanto ambos estão unidos pelo fascínio para com o comportamento individualista presente nos americanos, ao mesmo tempo que partilham o gosto por um sentimentalismo intenso que muitas vezes está subjacente a uma sobreposição de cinismo. Tal como no seu filme anterior, o cineasta pega numa histórica verídica fascinante e submete-a aos seus caprichos de contador de histórias.

O argumento foca-se na biografia de Joy Mangano, a criadora da Magic Mop que passou de uma insolvência limítrofe a magnata, tornando-se a primeira vez que o realizador desenvolve um projecto que conta com uma personagem feminina no seu centro. A história da protagonista é efervescente e desenvolve-se enquanto um moderno conto de fadas irónico, se não mesmo cínico. Quando a heroína cria o seu talismã somos remetidos para o segmento de The Sorcerer’s Apprentice de Fantasia (1940). Tal como acontece com Mickey Mouse, Joy é impulsionada a multiplicar a sua galinha dos ovos de ouro.

Através da utilização de momentos narrados e sequências onde o sonho ganha uma dimensão de telenovela, o filme adquire uma qualidade que o distingue da maioria dos filmes biográficos. A obra tem o seu pontapé de partida no set de uma telenovela dando o tom para como pessoas cómicas e meio patetas se podem comportar na vida e, em especial, nas vendas. Outro elemento único é o totalmente actualizado mundo do canal QVC. É emocionante poder vislumbrar o que acontece por detrás das câmaras daquele canal, um mundo que raramente tem sido explorado, se é que alguma vez o foi.


A rodear o desconexo universo da polivalente princesa Joy e a sua avó Mimi, sempre com uma palavra de coragem, encontramos o arquétipo de família desenvolvido por Grimm-Perraut: uma mãe depressiva e viciada em telenovelas; um pai irresponsável, que após uma palmada nas costas imperdoavelmente humilha publicamente a filha; uma madrasta má que investe na ideia da protagonista mas exige retorno financeiro; uma meia-irmã feia que ressente o sucesso de Joy e, inconscientemente ou não sabotei-a; e um delirante príncipe que volta e meia surge com assomos de inteligência.

Cada vez mais o realizador apresenta-se dependente de interlúdios e momentos musicais; sem eles, e como o lançamento do seu projecto inacabado no início do ano, facilmente conseguiríamos prever um filme monocórdico, ao invés de atingir de forma consistente uma diversa gama de notas. Tal como acontece no mais recente filme de Xavier Dolan, o cineasta não vai longe para a sua selecção musical, sendo que na maioria das vezes os personagens conseguem ouvi-la. A popularidade das canções nem sempre funciona, mas a sobreposição de temas românticos (a Cinderella de Prokovief, a banda sonora de Vertigo (1958) por Bernard Herrmann e a de David Buckley para The Good Wife) e de uma orquestra é perpetuamente sublime, funciona.

Jennifer Lawrence é simplesmente fascinante naquele que é o seu papel mais maduro até à data. A actriz consegue ser exemplar nos embaraçosos momentos iniciais em que a sua personagem se debate para vender o seu produto, e convincente na sua ascensão ao poder. Ela catalisa as suas próprias oportunidades e luta contra as suas próprias batalhas, partindo para uma guerra contra um grupo de empresários por conta própria. Não é supressa alguma que o filme apresenta um elenco secundário de luxo. David O. Russell tem provado desde sempre ter um talento sublime para dirigir actores e este filme não é excepção. Robert De Niro encontra-se em forma, como o seu lado cómico no ponto. O actor parece conseguir estar sempre no seu melhor sobre a batuta do cineasta.

O principal problema desta obra cinemática é a tepidez de algumas das imposições estilísticas do cineasta, a sensação de que ele está a tentar compensar o seu embaraço de nos estar a presentear com uma história bem-disposta com mecanismos que em nada contribuem para o objectivo que inicialmente se propusera: uma supérflua narração auto-consciente de Mimi, que desaparece a meio do filme; interlúdios ineficazes de uma espécie de lirismos onde a câmara flutua por casas suburbanas; montras e outdoors publicitários, entre outros. Estes aparatos imagéticos fazem-nos recordar autores americanos que tentam imitar os estilos de David Lynch e Gus Van Sant na tentativa de extrair a beleza surreal de elementos brejeiros e efémeros de uma sociedade de consumo que apresenta uma lacuna de perspectiva ou contexto.


Joy é uma comédia frenética, ligeira e vivaz com um ritmo acelerado, onde adversidade não é sinónimo de desistência. Esta fatia de vida e perseverança rapidamente se torna num turbilhão onde empresários são inerentemente matreiros e os membros familiares são irremediavelmente aliados incompetentes.

1 comentário:

  1. "Joy": 4* - "Joy" conquistou-me acima de tudo pela sua simplicidade, pois a sua história é bastante simples. Cumprimentos, Frederico Daniel.

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