domingo, 23 de janeiro de 2011

A Minha Alegria, por Carlos Antunes


Título original: Schastye moe

Atravessando a Rússia interior ao volante de um camião, Georgy encontra uma Rússia rural que não tomou ainda o caminho que a aproximará do mundo moderno.
Uma Rússia sem mais a dar do que desespero da sobrevivência, sem espaço para interrogações de carácter.
Os encontros de Georgy com todo o género de figuras, de polícias a uma criança-prostituta, caracterizam aquele espaço como a última fronteira da absurda violência.
A Rússia rural é a verdadeira personagem, repleta dos piores sentimentos que a humanidade ainda guarda.
Os episódios em viagem são a melhor forma de caracterizar um espaço assim, como que promovendo os encontros com os pontos que ainda marcam a desolação.
Poderia ser um documentário, de tal forma é credível o que se passa em frente a nós, mas está muito para lá do que admitiríamos que alguém nos mostrasse na tela.
Acreditamos que é a realidade mas não queremos acreditar pois este género de desprezo e inconsequência são feridas abertas no próprio conceito de Humanidade e, por isso, na nossa visão do Mundo.


No percurso que empreende, o outro protagonista possível, Georgy, passa de um acto de nobreza desprezado a um acto de violência ignorado.
O declínio da esperança e da humanidade dentro dele toma passos que se manifestam no seu físico e no seu comportamento.
O desaparecimento da ligação a qualquer sentimento edificante ou, pelo menos, não indigno, custa-lhe a alegria de que fala o título. Mas a alegria é só a superfície, pois custa-lhe também a voz, o aspecto, o contacto humano e o entendimento.
O seu acto final não é desesperado, não é raiva, é a prova de que o meio transforma a personalidade, molda-a de forma reactiva.
A violência atinge um ponto em que só a violência lhe responde.


Sergei Loznitsa veio do documentário mas sabe fazer ficção, sabe ligar as histórias que aprendeu ele próprio no espaço que agora ficcionaliza.
Há cinema-verdade aqui, mas há ainda mais a emoção do imenso grotesco a cair sobre um homem só, algo que apenas um contador de histórias poderia fazer acontecer.
É a nossa recusa final para não amaldiçoar o mundo, essa de não aceitar que uma única pessoa tenha de ser o receptáculo de todo este Mal - única palavra que resume o que vemos, afinal de contas.
Digo-o sem reservas, este é um filme que abre 2011 para marcar todo o ano cinematográfico.
Uma pedrada já não apontada a um metafórico charco estagnado de cinema mas à existência confortável dos espectadores., como o foi 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias em 2008.
O que resta para perguntar é se não haveria mais filmes assim para estrear no tempo que ficou de permeio.


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