terça-feira, 3 de abril de 2012

É na Terra não é na Lua, por Carlos Antunes


Título original: É na Terra não é na Lua
Realização: Gonçalo Tocha

Não há maior mérito para um filme do que conseguir manter-se tão vívido hoje como quando da única vez que o vi, aquando do encerramento do doclisboa.
O filme explora uma envolvência pessoal que se deixa contaminar pelo lado informativo, culpa do interesse diversificado que o espírito humano sempre apresenta.
O maior benefício de um ponto de partida em que o realizador se inclui é o facto de não sabermos onde chegará.
Estamos a olhar para o próprio processo de descoberta dos temas de interesse de Gonçalo Tocha, daquilo que fará sentido permanecer na sua memória e na visão cinematográfica que dela construirá.
Um filme assim feito através de um ponto de vista directo tem o poder de conceder ao público uma âncora emocional que lhe permite envolver-se com um local que não passava de um nome decorado na infância escolar.
Foi uma abordagem vista várias vezes na edição do ano passado do festival, poucas delas tão bem executadas como esta. São, inquestionavelmente, a oposição à força mais comum dos documentários que - chegando dos Estados Unidos da América e pretendendo com isso ter lugar nas salas de cinema dedicadas a blockbusters - pegam num tema forte e depois se vão deixando cair a análise objectiva em nome da exploração emocional de casos isolados.
Neste filme, que só fica na categoria de documentário porque é a única forma fácil de o enquadrar, Gonçalo Tocha tanto aprecia a poesia pausada dos mais antigos corvenses como critica o desplante político que quer levar por diante um progresso cego que equipare a ilha aos espaços continentais do país.
Mas o seu método é outro, o da confissão de como se envolveu com a mais pequena ilha açoriana, de como passou de um estranho de câmara na mão para ser um filho da terra desvendando ao resto do mundo os seus mistérios.
Nada traduz melhor isso do que o barrete que vai sendo tricotado para o realizador. Um barrete que só era entregue aos pescadores locais e que por dentro leva o nome do seu dono.
Sempre que se viu Gonçalo Tocha desde que o filme começou a passar em sala, o barrete estava posto, mostrando que, à distância, ele é tanto um dos habitantes da ilha como o portador de uma visão da mesma que não poderia pertencer a mais ninguém.
A linha da frente da descoberta de um dos últimos lugares que ainda guarda o sonho - é olhar as paisagens filmadas ao som do vento - é sua mas carregada das memórias (até em registos físicos) e das palavras dos seus pouco mais de quatrocentos habitantes.
Findas as três horas de filme, vê-se que Gonçalo Tocha se propôs ao objectivo em que investiu dois anos de viagens e outros tantos de montagem: filmar e mostrar tudo (ou quase, pois por mais pequena que seja a ilha, ninguém acredita que se tenha esgotado aqui).
Sobra, porém, um desapontamento que é não é tão intenso como o prazer da descoberta mas que não desaparece.
A culpa é do barrete, querendo isto dizer que sentimos falta que o realizador não se tenha acercado ainda mais do que a ilha (simbolicamente ou não) lhe confiou.
O alargamento do espectro do que é filmável impede que algumas partes do que ficou na montagem final se relacionem com a pessoalidade da partilha que vemos no espaço onde aquele barrete vai nascendo.
Queríamos que Tocha tivesse sabido afastar-se do material - e do Corvo, eventualmente - para preparar uma visão contínua que fizesse claramente crescer uma única - não uniformizada - visão da ilha em torno dele próprio.
Evitaria assim aquela divisão em capítulos que nada faz pelo filme a não ser facilitar-lhe transições de perspectiva que ele não soube encadear. Mesmo se, reconheça-se, os dois anos de filmagem se mostrem de uma incrível coerência interna que valoriza a sapiência de Tocha para a arte de bem filmar.


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