quarta-feira, 9 de maio de 2012

Entrevista a Júlio Alves, realizador de "A Casa" - «Tentei trazer a este filme um olhar diferente»

Este ano na competição nacional do IndieLisboa 2012 constavam três documentários num total de cinco obras a concurso. Um fenómeno nada incomum para o festival, já que em nove edições foram consagrados sete documentários com o prémio de Melhor Longa-Metragem Portuguesa. É um dado potencialmente curioso e que demonstra a boa forma que o cinema documental tem apresentado nos últimos anos. Mas o mais curioso é que uma dos mais interessantes obras a concurso deste ano, catalogada nessa categoria, é também uma desconstrução do género. Falamos de A Casa, primeira longa-metragem de Júlio Alves, exibido nas secções Competição Nacional e Cinema Emergente do festival.

Em conversa com o realizador percebemos que essa intenção foi propositada. «Eu não queria fazer um documentário típico. Quando ligas a câmara não sabes muito bem onde começa e acaba o documentário. Tem como base o documentário, mas não é necessariamente um, acho que é mais um objecto fílmico.» A câmara do realizador preocupa-se em filmar uma casa e os seus primeiros habitantes. «Os primeiros habitantes de uma casa são quem a constrói. O acto de construir é um acto de habitar, logo quem a constrói faz tudo o que uma pessoa normal faz dentro de uma casa terminada. Brincam, trabalha, conversam, têm momentos de lazer e descanso, comem e dormem. Queria trazer para dentro daquela casa, as pequenas histórias de família, tentei trazer pedaços das suas histórias, mas ligadas ao conceito da casa e do lugar». A curiosidade nesta intenção é que o cineasta traz este lado mais humano do ponto de vista dos trabalhadores emigrantes de uma casa, mas atribuindo-lhe maioritariamente uma visão poética e contemplativa do espaço. Negando toda e qualquer intenção social evidente. «Quem sou eu para dizer que estou a fazer uma crítica social? Não, estou é a observar um contexto social. Tento observar aquilo que me rodeia, nem tenho outra pretensão. Não faço filmes como uma espécie de diversão ou ocupação de tempos livres. Procuro é retratar as coisas sem criar um ponto de vista moralista».


Como fez isso? Filmando durante dois anos, cerca de 80 horas de material, numa casa em construção, onde obedecia a uma rotina constante de, no mínimo, quinzenalmente filmar e conviver com os trabalhadores da obra num dia inteiro de trabalho, das 8h às 17h. Quando questionado sobre o porquê da escolha daquelas personagens, maioritariamente de nacionalidade brasileira, Júlio Alves é categórico em afirmar: «eu não queria fazer mais um filme sobre emigrantes coitados, privilegiei com quem fui criando uma relação. Serem brasileiros teve que ver com o contexto actual. Se fosse uma obra há dez anos atrás poderiam ser ucranianos, ali eram brasileiros e agora muitos deles estão a regressar ao Brasil. E se calhar daqui a uns anos vais encontrar cabo-verdianos ou portugueses, mais do que imaginavas há cinco anos atrás. Não é uma opção minha, é mais uma característica. O que eu queria era que eles se habituassem a mim, eu a eles, eles à câmara e que eles pudessem interagir. Era necessário passar tempo». Passagem de tempo essa que sentimos pela própria transformação das personagens, há quem parta e regresse, há inclusive um guarda-vestidos constantemente a mudar de sítio, os trabalhadores a comerem sempre em sítios diferentes, «um microcosmos em constante transformação, uma reorganização constante, um lado mutante da casa». Sempre essa preocupação de manter a narrativa estruturada sobre a evolução da própria casa, com o tempo como uma presença constante captada através de noções como as nuvens e um constante jogo de luz e sombra. «São os elementos que a casa me dava». Porquê então um objecto fílmico tão formalmente arquitectado? «O Cinema e a Arquitectura são disciplinas muito parecidas na sua forma, o projecto e a metodologia são muito próximas. Um filme demora dois anos a fazer, a casa também. As personagens passeavam-se naquelas manchas de claro/escuro, vazio/cheio, actuavam e interagiam nesse espaço, havendo uma mise-en scéne também preocupada com essa questão da luz e sombra. No fundo, há uma sub-trama de ligação ao Cinema que me afasta do documentário convencional do ponto de vista formal»

Agora com a exibição no IndieLisboa, que já considera uma vitória, a estratégia passa pela intenção final de estreá-lo em sala de cinema. Mas é cauteloso: «só faz sentido pensar nisso com o resultado que o filme possa ter numa carreira de festivais». Enumeramos obras recentes como Lisboetas (2004), Ne Change Rien (2005), 48 (2010), José e Pilar (2010), É na Terra não é na Lua (2010) ou Linha Vermelha (2012), que Júlio Alves considera «filmes importantes e pertinentes. Filmes muito sólidos que revelam o olhar pertinente de um cineasta. Nenhum deles é moralista, é apenas um olhar sobre determinado assunto. Eu tentei trazer a este filme isso mesmo: um olhar».



A Casa é uma produção totalmente independente, sem qualquer apoio do ICA e financiada por si, através da Midnight Express e com o apoio da Ukbar Filmes. O realizador não deixa, pois, de manifestar a sua preocupação com o actual estado do financiamento do cinema português. «É terrível, é preocupante. O cinema é, até à data, a única actividade com um corte de 100%. E o seu financiamento não vem directamente do Orçamento de Estado, mas sim de uma taxa da publicidade paga na televisão. Esses cinco milhões de euros anuais permitem que um sector trabalhe e pague impostos, portanto o Estado recupera algum do investimento feito. Mais importante: há um património. É a identidade e a memória de um país que estão a ser apagadas. A proposta de Lei já saiu e já foi adiada duas vezes sem que haja um calendário ou respostas credíveis. Este espaço de tempo é terrível: há centenas de pessoas sem poderem trabalhar e não são só realizadores, um filme faz-se com várias pessoas. Socialmente pode ser algo terrível, mas o mais grave é que um país sem investimento na cultura não é um país civilizado».

Um futuro incerto, mas que não faz o jovem realizador baixar os braços. Enquanto espera que A Casa possa ganhar um lugar merecido no panorama do cinema nacional, esperançosamente levanta a questão «quem sabe se este filme não abra portas para novos projectos?». O cinema português ainda vive.


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