Título original: Flight
Realização: Robert Zemeckis
Argumento: John Gatins
Elenco: Nadine Velazquez, Denzel Washington, Tamara Tunie, Brian Geraghty, Kelly Reilly, Bruce Greenwood, E. Roger Mitchell, John Goodman e Melissa Leo
O final de Flight faz olhar para os momentos de confronto com um grupo de cínicos que as personagens compostas por James Stewart para Frank Capra tinham de enfrentar.
Colocar aquele estilo de clímax no filme e usá-lo como momento de transformação não tira o molde perfeito ao estilo dos filmes de Capra, mas sublinha o calor humano que Zemeckis mostrou em muitos dos seus filmes.
A semelhança entre os dois realizadores está lá desde os primeiros filmes de Zemeckis, mesmo se possa ser em Forrest Gump que essa ideia se cristaliza, há um estilo de comédia de bons sentimentos que o realizador foi buscar a Capra, tal como se descobriam as referências a It's A Wonderful Life na trilogia Back to the Future e a premissa de Used Cars parece quase uma réplica desse filme.
Neste cenário, o volte-face final parece inevitável para redimir o Whip Whitaker de Denzel Washington que, como James Stewart, consegue sempre levar o público a criar uma enorme simpatia por si. E, neste caso, consegue-o por mais repelente que seja a sua personagem.
Nesse aspecto da sua personalidade reside o desajuste dessa cena, uma redenção miraculosa assente numa espécie de amor que, pela primeira vez, vence o narcisismo auto-destrutivo. Não que haja surpresa nela - embora a expectativa de que venha a acontecer seja diminuída na cena imediatamente anterior - mas é um momento de idealismo desagradável num filme que abarca um valente cinismo.
Começa tudo pela confiante interpretação de Denzel Washington que não tem nenhum grau interno de julgamento mas que aceita - como a própria personagem que afirma "I choose to drink" - o lado melhor e pior de Whitaker. Denzel Washington aborda a personagem com uma variedade de criteriosas e suaves cambiantes que fazem de Whitaker um personagem por inteiro.
Um personagem de quem o público não pode deixar de gostar, mesmo encarando sinais de um alcoólico inveterado que tomba de cara ao tentar apanhar um comando do chão ou que bebe uma garrafa XXL de vodca do interior de um saco de papel pardo para compensar os dias que passou sóbrio.
Mas o público está avisado desde o início do filme de qual é o comportamento deste piloto e mesmo assim não consegue deixar de torcer pelos seus feitos poucos momentos depois quando o avião ameaça despenhar-se e ele tem a lucidez de garantir que a hospedeira que viaja com ele deixe uma mensagem aos filhos na gravação da caixa negra.
A interrogação moral sobre a zona ambígua onde se fazem os heróis e os vilões é reforçada pelos melhores momentos do argumento de John Gatins, de um humor negro que inverte a expectativa normal: o doente terminal rejeita as grandes lições de vida perante o prazer do erro cometido, o traficante local (John Goodman) torna-se no carismático vizinho que todos gostaríamos de ter e a possível vitória de Whip far-se-á com base no mesmo cocktail de bebida e cocaína que o levou até ali - e não com os sete dias de abstinência que fizera.
Apoia-se, mesmo que não se admita, que Whip se safe do processo. Merece-o enquanto descarado convicto, mas não como ser humano.
Mas a maioria dos seres humanos, escrutinados perante situações inesperadas, provavelmente não o merecem. Pior ainda, vacilarão na convicção de que devem levar a mentira que servem aos outros e perderão a hipótese de se tornarem maiores do que a memória das suas vidas merece.
Talvez, por aí, Robert Zemeckis seja honesto com a realidade - veja-se Lance Armstrong que poderia ter ficado como Lenda na opinião pública negando a realidade até ao final - mas é desonesto com a sua composição do prevaricador: acima de tudo divertida, mesmo por entre momentos censuráveis.
Se um final pode alterar a leitura de um filme, desvirtuando o que nele vínhamos lendo - mesmo se de virtudes este filme nada tinha! - é o de Flight, quando o prazer de todo o filme dá lugar a um pequeno desapontamento que se prolonga pelos dias seguintes.
O sentimentalismo do monólogo moral que se segue à cena confessional não pertence ao filme que nos deixa impressa a imagem da beleza do arco-íris translúcido das miniaturas de bebidas alcoólicas alinhadas umas ao lado das outras contra a luz brilhante de um frigorífico acabado de abrir.
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