quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Lincoln, por Tiago Ramos


Título original: Lincoln (2012)
Realização: Steven Spielberg
Argumento: Tony Kushner
Elenco: Daniel Day-Lewis, Sally Field, David Strathairn, Joseph Gordon-Levitt, James Spader, Hal Holbrook, Tommy Lee Jones, John Hawkes, Jackie Earle Haley e Jared Harris

O cinema de Steven Spielberg frequentemente mergulhou no melodrama, com tendência excessiva para a emoção e lamechice, tão visível por exemplo na sua anterior longa-metragem, War Horse (2011). Habitualmente conhecido pela sua imagem de marca clássica, do entretenimento familiar mesmo quando mergulha em géneros distintos (embora com claras e honrosas excepções), a incursão do cineasta na biografia do presidente norte-americano Abraham Lincoln revelou ser uma produção atípica no currículo do realizador. Não que não seja visível esse olhar habitual de um realizador apaixonado pelos seus trabalhos, mas principalmente porque Lincoln, além de se afastar das normas da biografia clássica no cinema (prefere focar-se num evento específico e mais nos bastidores), refugia-se num tom mais minimalista, clínico e histórico que o habitual. Diferença que, numa primeira instância, parece bem-vinda no trabalho de quem não raras vezes se perde no sentimentalismo. E de facto, Lincoln é uma obra visivelmente superior ao já referido War Horse, bem como um dos seus melhores trabalhos dos últimos anos. O trabalho de Steven Spielberg é dignamente orquestrado de uma forma tecnicamente exímia (e notável desde os pequenos pormenores a nível de design sonoro, passando pelo guarda-roupa, direcção artística ou a fotografia frequentemente escura de Janusz Kaminski). Um trabalho cuidado que mostra uma maior preocupação do cineasta em filmar mais do que um simples filme.

Mas apesar de receber o seu nome, o filme não é tanto sobre o Presidente norte-americano como é efectivamente do processo de bastidores que conduziu à aprovação da conhecida 13.ª emenda (que no sentido lato significou a abolição da escravatura nos Estados Unidos). E o problema de Lincoln começa precisamente pelo argumento de Tony Kushner, que é claramente um trabalho merecedor de destaque pela sua importância histórica, mas que também por aí, significará muito mais para um público norte-americano do que qualquer outro. E embora todo o grau de interesse que tenha esse combate de palavras, a forma clínica e académica com que é conduzida provoca com que seja um objecto demasiadamente apático e, por conseguinte, por vezes aborrecido das cerca de duas horas e meia de duração. E pior que isso, explora superficialmente as personagens (Abraham Lincoln parece reduzido a um estereótipo, Mary Todd merecia ser aprofundada, assim como a história de Thaddeus Stevens), reduzindo-as a arquétipos, preocupando-se apenas com a precisão histórica. Mas apesar de ser um objecto aparentemente preocupado em revelar a sua intenção anti-esclavagista, não deixa também de ser profundamente redutor, abordando apenas o lado heróico de uma luta parlamentar que era mais aparente do que realmente nobre.

Daniel Day-Lewis faz o que pode com esse arquétipo que lhe é dado através do argumento. O seu trabalho é elogiável, mas também superficial na forma como revela uma figura mítica, ao invés de uma visão realmente humana. O seu trabalho digno de nota é a transfiguração física e não por isso menos importante. Mas quando a personagem é menos humana como esta, parece que frequentemente estamos perante um "boneco", decalcado de uma figura mítica. Na realidade, quem mais se destaca em Lincoln são os actores que interpretam personagens ainda mais negligenciadas pelo argumento: caso de Sally Field como a esposa Mary Todd Lincoln e cuja força interpretativa é estrondosa e de Tommy Lee Jones como Thaddeus Stevens, um dos maiores apoiantes da abolição da escravatura e um dos membros mais influentes do Congresso. Duas personagens e interpretações dignas de nota (e superiores em larga escala à de Daniel Day-Lewis), mas reduzidas a uma superficialidade imerecida.

Mas mesmo essa visão clínica e heróica de uma fase importante da História dos Direitos Humanos nos Estados Unidos e um passo importante na política mundial, pode ser de facto elogiável também por não se afundar frequentemente no melodrama excessivo do cinema de Spielberg. Uma visão histórica (mesmo que tendenciosa) que o realizador soube manter a maioria do tempo, mas que é visivelmente desvirtuada num final que, através de uma breve junção de imagens, à luz da vela, deixa revelar um sentimentalismo bacoco, antiquado e absolutamente desnecessário, que deita por terra grande parte do trabalho até aí.


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