Com mais de cem anos de história, o Cinema Brasileiro sempre foi particularmente rico na sua diversidade. Com casos de maior ou menor sucesso, inclusive além-fronteiras, nem sempre porém o seu cinema foi devidamente apreciado no seu próprio país (tal como em Portugal), existindo inclusive um momento na sua História em que a produção nacional esteve praticamente parada quando, no começo dos anos 90, a Embrafilme, empresa estatal de cinema, encerrou as suas actividades. Nos últimos anos tem-se assistido porém a uma expansão do Cinema Brasileiro, evidente por exemplo na presença em grandes festivais internacionais, em inúmeros prémios recebidos por todo o mundo, bem como vários filmes a terem distribuição no estrangeiro e cineastas a começarem uma carreira internacional. Curiosamente esse reflexo começou também no seu próprio país, com vários dos seus filmes (com um aumento extenso da produção nacional) a tornarem-se sucessos de bilheteira entre portas.
O factor que poderá ter iniciado esse fenómeno de retoma do Cinema Brasileiro terá provavelmente começado no início dos anos 90, pela criação de uma Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual que terá trabalhado inclusive na elaboração da Lei do Audiovisual. Foi inclusive na década de 90 que as Organizações Globo criaram a Globo Filmes, que reposicionou o cinema brasileiro, tornando-se um monopólio no mercado brasileiro e com os seus filmes a receber mais de 90% da receita de bilheteira do cinema de produção nacional (e 20% se pensarmos no mercado total de distribuição no país). O factor celebridade, com os actores das novelas de horário nobre a protagonizar muitos dos filmes produzidos terá influenciado o público, que retomou o hábito do espectador brasileiro ir ao cinema.
Mas poder-se-á dizer que o grande reencontro do público brasileiro com o seu cinema terá acontecido com
Cidade de Deus (2002), de
Fernando Meirelles, que com novas estratégias de lançamento, perspectivou uma carreira internacional inesperada. Actualmente considerado como um dos melhores filmes da década (a nível mundial), o filme teve um percurso maravilhoso a nível internacional, que culminou com quatro nomeações aos Óscares, grandes prémios da indústria cinematográfica. Esse resultado evidenciou-se também no próprio circuito brasileiro, com o filme a fazer mais de três milhões de espectadores no país. No ano seguinte,
Carandiru (2003) aproveita o balanço de um público entusiasmado com o potencial do seu cinema (o filme teve honras de competição em Cannes) e conseguiu quase cinco milhões de espectadores. A machadada final terá sido dada com
Tropa de Elite (2007), de
José Padilha, que apesar de ter feito menos espectadores por comparação (pouco mais de dois milhões e meio), teve um grande sucesso fora de portas, ganhando o Urso de Ouro no Festival de Berlim (quase dez anos depois de outro filme brasileiro,
Central do Brasil, ter vencido também) e uma série de outros importantes galardões. É importante mencionar que quando
Tropa de Elite estreou nos cinemas brasileiros, uma cópia pirateada já se encontrava disponível na internet, sendo o mais pirateado no país mesmo meses antes. Este sentimento de orgulho pelo cinema brasileiro no próprio país acabou por se generalizar, abrindo portas para uma nova onda de promoção nacional e magníficos resultados de bilheteira, com destaque por exemplo para uma fórmula
hollywoodesca e o primeiro
franchise do cinema brasileiro como
Se eu Fosse Você 2 (2009) a ser visto por mais de seis milhões de brasileiros. Outra sequela de uma comédia como
De Pernas pro Ar 2 foi lançada no Brasil no final de 2012 e já alcançou quase cinco milhões de espectadores, sendo inclusive o melhor resultado de estreia de um filme nacional. O mesmo acontece com o recente
Tropa de Elite 2 (2010) a tornar-se um fenómeno brutal de audiência e batendo recordes no país: com mais de 11 milhões de espectadores. Após isso, o sucesso do cinema de produção brasileira na sua própria bilheteira tornou-se mais constante.
Esse sucesso abriu recentemente o mercado brasileiro (e também internacional) para um outro tipo de Cinema Brasileiro, mais independente. Reflexo talvez do boom económico que o Brasil tem experienciado nos últimos anos, com perspectivas optimistas em relação ao seu futuro e que o coloca como uma das maiores economias emergentes mundiais, o Cinema Brasileiro tem-se mostrado também aberto para uma nova faceta. Parece retirar-se do cinema com foco nas favelas e volta-se para uma classe média ascendente, centrando-se nessas novas personagens do panorama nacional e nesses novos hábitos de consumo que se implementaram.
Dois dos casos mais interessantes deste novo cinema são, curiosamente, bastante semelhantes entre si:
Trabalhar Cansa, de
Marco Dutra e
Juliana Rojas e
O Som ao Redor, de
Kleber Mendonça Filho. Em ambos os filmes, que receberam uma grande atenção crítica a nível internacional (
O Som ao Redor iniciou a sua carreira internacional bem antes da sua distribuição brasileira e a sua repercussão influenciou em muito as receitas de bilheteira), parte-se um princípio semelhante e atento à actualidade que os rodeia.
Trabalhar Cansa envolve-se no mundo do trabalho (mais atento à sua eminente desagregação, apesar das perspectivas relativamente positivas quando comparadas com o panorama mundial). Centra-se no conflito familiar (entre um homem recém-desempregado, à procura de lugar num mercado competitivo e em acelerada mudança e uma mulher que, apesar disso, decide aceitar os riscos e criar o seu próprio negócio num pequeno supermercado) que evoluiu para um conflito entre patrão e empregado, que permitem a construção de arquétipos que são porém um bom reflexo da sociedade contemporânea brasileira. Já O Som ao Redor permite uma análise observacional de uma rua em Recife, habitada por membros da classe média, presos nessa monotonia e repetição de blocos de apartamentos, repletos de grades e câmaras de vigilância, que permite uma identificação mais abrangente da sociedade contemporânea brasileira.
Ambos os filmes podiam visualizar-se na óptica do realismo, mas são curiosamente inovadores e subversivos nessa intenção, introduzindo o elemento terror, suspense e sobrenatural (de forma mais ou menos evidente). Não deixa de ser curioso como dois filmes de produção distinta seguem uma linha tão semelhante, a ponto de quase poderem ser comparados como dois filmes consequentes entre si. A tensão e medo que se vive naquela família de Trabalhar Cansa (e aquele supermercado estranho e fantasmagórico) são os mesmos que se vivem naqueles blocos de Recife em O Som ao Redor. Ambos utilizam a técnica da sonorização de uma forma brilhante, de forma a espelhar um clima de ansiedade, criando uma fantasmagórica junção de sons e imagens. Para aquelas personagens o medo e a tensão sentem-se, mas quase que se desconhecem as causas (se bem que em O Som ao Redor estas são mais claras). Uma tensão e terror generalizados que parecem metaforicamente reflectir o medo do amanhã na sociedade brasileira. Uma espécie de bomba-relógio que parece tiquetear o medo que o retrocesso da sua economia e sociedade volte a surgir.
Os dois filmes exibem uma violência e tensão latentes, de um modo absolutamente genial, que só comprova como este recente cinema brasileiro parece mais atento às evoluções da sociedade. Juliana Rojas (e Marco Dutra) e Kleber Mendonça Filho são, no Brasil, dois dos mais promissores cineastas que se espera que antecipem um novo ciclo para o cinema brasileiro. Sobretudo uma nova forma de pensar Cinema, de se criar Cinema, a seguir não só no mercado brasileiro, mas também em Portugal. Queremos melhor que o tempo de crise para aprender a absorver as novas evoluções da sociedade portuguesa? Sobretudo o de pensar também um cinema em Portugal que seja um reflexo do seu povo, que seja atento ao meio que o rodeia e que o faça identificar-se com ele. E sobretudo que o faça sentir-se novamente orgulhoso do seu Cinema.
[Obrigado a Walter Neto pelo precioso auxílio na compreensão do mercado brasileiro, bem como na revisão do texto.]