O que pensamos quando falamos em produção cinematográfica? Dos realizadores e das suas influências, dos actores e das suas performances; ou ainda, de elementos mais técnicos como fotografia, edição, som. A lista amplia-se à medida que o tom do debate se alterna entre o puramente passional e o mais técnico - e porque não, às vezes, misturando os dois. Faço essa pequena introdução para destacar a omissão da noção de “estúdio e produção” em muitos dos debates que travamos ou das críticas que escrevemos e lemos.
A produção cinematográfica não teria ultrapassado um século de existência e tornado-se o produto tão massificado que é (sem nenhum tipo de julgamento de valor no uso da palavra “massas”) se, além da parte estética, não tivesse também se consolidado como uma indústria. Muito do modelo de produção mudou, para melhor ou pior, mas é inegável que todo o país que tenha uma grande produção cinematográfica não pode sustentar-se apenas com os filmes do dito “circuito arte”. Quando pensamos em cinema brasileiro, por exemplo, momentos chaves vem à cabeça dos cinéfilos: a chanchada (frequente entre os anos 30 e 60) e pornochanchada (comum na década de 70), ou o mais frequente, a retomada (desde o início dos anos 90).
Tal retomada foi lenta. Filmes brasileiros começaram a ser selecionados e aclamados em festivais, o que, por sua vez, encorajava as distribuidoras. Posteriormente falou-se no cinema sobre a própria sociedade brasileira e suas inquietações. Surgia, então, o fenómeno dos “filmes favela” e a produção continuou aumentando e transformando-se. Mas num país com uma teledramaturgia tão forte, não é de se espantar que da televisão viesse o estúdio e a estética que dominaria fim de semana após fim de semana as bilheteiras nacionais.
A Globo Filmes começou um intenso processo de produção cinematográfica, utilizando atores de renome na TV, assim como estéticas e temas dos quais o brasileiro não apenas já estava habituado, mas também gostava de ver. E se hoje temos bilheteiras que batem recordes e franquias como Se Eu Fosse Você (2006) e a sequela Se Eu Fosse Você 2 (2009) ou ainda o recente fenómeno De Pernas pro Ar (2010) e De Pernas pro Ar 2 (2012), devemos isso em parte à produtora Globo Filmes.
Mas nem tudo são flores. Como todo o modelo de produção em série, toda a visão dos realizadores e argumentistas deve-se enquadrar nos moldes da produtora, que tem tido sucesso, sem se arriscar muito e parece preferir continuar assim. Para exemplificar, focaremos em dois filmes que têm o sexo ou até mesmo uma “guerra” entre os sexos como tema central, mas que não conseguem sair do lugar comum em que se tonou a estética “Globo Filmes”.
Em 2012 chegava às salas de cinema uma das já muito lançadas comédias com Bruno Mazzeo, um dos mais conhecidos “novos” rostos do humor brasileiro: o filme E Aí... Comeu?. A história busca mostrar a relação entre três amigos que se reúnem num bar para discutir sobre sexo, mulheres e, às vezes, alguns de seus problemas pessoais. Parte do que funciona no filme pode ser creditado à realização de Felipe Joffily, que estrutura o seu filme como um grande flashback. Basicamente temos uma estrutura que se repete: eles encontram-se, eles bebem e eles falam. A partir do que é dito, inicia-se um flashback e vamos conhecendo mais daquelas personagens. Essa repetição confere um certo humor ao filme, já que nunca parecemos saber tudo sobre aqueles homens e, logo, não sabemos o que esperar deles. Outro momento inspirado que também pode ser creditado a Joffily é uma inesperada quebra da "quarta parede" numa cena de sexo: quando Honorário (Marcos Palmeira) aparece para ensinar ao público como um bom sexo oral deve ser feito. Mas a inspiração acaba aí.
Devemos ter em mente a eterna pressão destes estúdios em manter uma classificação etária baixa, para ter uma bilheteira maior; o que atrapalha na abordagem dada a certos temas como o sexo. O que parecia inspirador, torna-se chato e cansativo à medida que não avança e nem parece querer dar em nada. Tenta-se falar sobre sexo, mas tomando-se os devidos cuidados para não explicitar nada: até mesmo o texto assume um tom de recato em alguns momentos. O roteiro quer falar da mudança do que pensamos ser comportamento feminino e masculino, mas para no final sustentar os estereótipos antiquados, aos quais grande parte da teledramaturgia - pensemos aqui nas famosas novela da emissora - estão presas. O elenco, formado por nomes como Bruno Mazzeo, Emílio Orciollo Netto e Dira Paes, pouco se destaca porque tem pouco que fazer numa comédia que não tem graça, mas que também não funciona como drama. Cheia de chlichés (o casal que tem vidas duplas, o escritor e seu vício em sexo e prostitutas, e o cara mais velho que se vê atraído por uma adolescente), a dita comédia parece mais um grande sketch que, devido à duração, não consegue sustentar durante toda a projeção.
Outro exemplo é o sucesso estrondoso de bilheteira De Pernas pro Ar (focaremos na análise a primeira longa-metragem da série, lançada em 2010). A história segue Alice Segretto (interpretada pela sempre competente Ingrid Guimarães) que, de tão focada no trabalho, acaba perdendo o marido João Luiz (Bruno Garcia) e pouco tempo passa com seu filho. Mas tudo se transforma drasticamente quando ela perde até o emprego. Eis então que conhece Marcela (Maria Paula) que a apresenta ao universo das sex shops. Agora ela tem uma nova carreira e pode tentar reestruturar a sua vida.
Tudo acontece dentro da estética das muitas comédias lançadas pela Globo Filmes. Todos os atores são rostos conhecidos do público e a estrutura narrativa assemelha-se muito às séries cómicas, próprios da Globo. O que tem de positivo é o texto que, com a mão de Ingrid Guimarães, funciona e possibilita momentos realmente divertidos. Não é um filme genial ou um marco da indústria brasileira mas, ao contrário de E Aí... Comeu?. É, ao menos, uma comédia que faz rir. Mas aqui, como no primeiro filme analisado, tudo o que é criado (a ideia da independência da mulher, da liberdade sexual) é sacrificado para que o final se enquadre dentro do que vemos todos os dias nas novelas e que raramente quebram essa regra: a mulher deve deixar tudo o que conquista e organizar a sua vida em função do homem, que vive para conquistar ou, neste caso, reconquistar. Uma pena ver artistas tão talentosos presos a um sistema que não se preocupa em ir além do que já, normalmente, tem feito.
Por Walter Neto, cinéfilo, licenciado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade de Coimbra com ênfase em Cinema
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