terça-feira, 10 de setembro de 2013

INDIE 2013 (Belo Horizonte) - Dia 4


Big Sur (2013), de Michael Polish Uma estrelaUma estrelaUma estrela


Um dos debates mais calorosos quando se pensa em cinema certamente é o da adaptação cinematográfica. Muitos ainda vêem uma hierarquia entre literatura e cinema, na qual a sétima arte sempre viria em segundo plano. Seja por ser mais recente, ou por ser desde o nascimento uma arte massificada, o oposto da literatura; ainda que de tempos em tempos esbarremos em algum fenómeno literário. 

Quando uma adaptação chega às telas, não devemos cobrar fidelidade - o cinema tem recursos que a literatura não tem, assim como a literatura não possui todos os meios dos quais o cinema dispõe. Devemos entender que estamos a comparar “leituras” ou “interpretações” do realizador, do argumentista, do produtor e que de uma forma ou de outra isso sempre será diferente do que o escritor pretendeu (ainda que nunca tenhamos acesso a essa informação) e do que nós imaginamos. Peço desculpas pela grande divagação, embora eu a sinta necessária. 

Um dos nomes mais adorados da literatura mundial é, sem sombra de dúvidas, o de Jack Kerouac, o rei dos beatniks. Movimento que, mesmo após anos de seu surgimento e declínio, nunca deixou de fato de influenciar muitos dos que o lêem. Lembro-me de ter lido em algum lugar que não havia nada mais triste que um jovem conservador. E essa frase vem-me sempre à mente quando penso nas obras de Kerouac e porque razão elas ainda continuam tão relevantes. Talvez essa inquietação seja natural aos jovens, essa sensação de não possuir um lugar no mundo, esse medo da certeza de que eventualmente nos tornaremos como nossos pais. Kerouac continua um rei, embora nunca tenha clamado para si o título, de quem passa por esses momentos turbulentos da juventude. Mais uma divagação, peço desculpas novamente. 

Mas após a sessão de Big Sur não conseguia deixar de pensar que a única coisa que havia ficado do filme em mim era a impressão de que os poucos mais de 90 minutos não apresentaram nada além das digressões de Kerouac, bem interpretado por Jean-Marc Barr. E talvez isso ocorra pelo tom de reverência que se tem ao se falar da obra ou ao adaptar a obra do autor. O filme tem os seus belos momentos, como todo o primeiro ato no qual somos apresentados a um Kerouac pouco conhecido. Cansado, com medo, acuado por tamanha repercussão conseguida pelo seu On The Road. Mas depois o filme cai no lugar comum das adaptações de Kerouac. O mesmo problema que me incomodou bastante durante a sessão de On The Road (Walter Salles): mais texto, seja narrado em off ou mesmo filmado, vemos Kerouac digitando e digitando o que seria o livro Big Sur. Logo mais reverência e menos cinema. 

O filme é bom, as atuações estão todas corretas, a realização é segura, mas fica-se com aquela sensação de que logo esqueceremos sobre esse encontro com Kerouac e sua loucura e inquietação em Big Sur, que ironicamente fica como secundário no filme. 




Há cineastas que não se preocupam em facilitar a vida do espetador e que consequentemente não desejam que o seu público caia na ilusão de realidade criada pelo cinema, em relação ao que é projectado no ecrã. Um exemplo disso é o português Manoel de Oliveira que parece querer filmar a linguagem, o meio cinematográfico, mais que a própria história sendo contada. Ainda utilizando-me do exemplo dado com Oliveira, basta vermos a forte presença de uma mise-en-scène teatral nos seus filmes, uma marcação rígida dos atores, a câmara sempre parada à frente do plano, tal como o público fica sentado diante de um espetáculo teatral, isso tudo somado ao texto sempre declamado pelos atores. 

Eis que me deparo com Història de la meva mort, de Albert Serra e passo toda a projeção do filme pensando em Oliveira. A história é teatral, sim, mas assim como em Oliveira, não é teatro filmado. A diferença é enorme entre as duas situações e não pode ser esquecida. Atores sempre filmados em longuíssimos planos, quase todos primeiríssimos planos; vemos tudo bem de perto. A boca e o texto declamado é o objeto de desejo de Serra que, em raros momentos, permite filmar o fundo no qual os atores estão inseridos. 

A narrativa é bastante simples, vemos figuras barrocas, exageradas, caricatas até. Aqui, Casanova e Drácula, mas poderiam ser homens comuns que viviam no velho continente em períodos de transformação social e filosófica. O pensamento estava mudando: a razão e fé batalhavam por quem tinha mais influencia e espaço no velho continente. E o homem comum via-se no meio dessa disputa. 

Os personagens lêem, comem e até defecam – o que é explicitamente filmado por Serra. Tudo para construir um momento histórico e situar o filme nele sem se apoiar em grandes cenários ou figurinos para reconstrução de época. É certamente um belo estudo das possibilidades da linguagem cinematográfica e de seu poder, mas ao longo das quase três horas de duração esbarramos em alguns problemas. 

Claro que é um filme tão barroco quanto seria de se esperar: um exagero de elementos, figuras satíricas e a longa duração. Mas há um questionamento que faço: Serra coloca todos aqueles elementos, porque a sua narrativa pede ou para “sofisticá-lo” e “adequá-lo” aos festivais? Se for este último caso, parece ter dado certo, já que o filme venceu em Locarno. Talvez seja um daqueles filmes que, com o tempo e outras “visitas” do público, cresça, mas eu (e grande parte do público, já que muitas pessoas foram abandonando a sessão ao longo da projeção), saímos do cinema com a sensação de que uma grande obra foi atrapalhada por uma grande pretensão. Ou talvez este tenha sido o real propósito de Serra: complicar e não nos dar um segundo de descanso ao longo da projeção. E se um dos papéis da arte é incomodar e nos tirar do comodismo, o seu filme é um grande êxito para o qual não estava preparado.


As opiniões são de Walter Neto, cinéfilo, licenciado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade de Coimbra com ênfase em Cinema, a quem muito agradecemos pela contribuição.

Sem comentários:

Enviar um comentário