quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Festival de San Sebastián 2013: Secção Kutxa - Novos Realizadores, por Diogo Figueira


Descrever a experiência inesquecível que foi estar em San Sebastián – cidade e festival – ao abrigo de um workshop de jornalismo fílmico promovido pela Nisi Masa – Young Network of European Cinema, por imagens ou por palavras, parece-me herculano a tão pouco tempo do meu regresso à vida real. Sinto-me obrigado a sugerir as palavras de uma amiga, Eftihia Stefanidi, no editorial da última newsletter antes da publicação do volume da Nisimazine sobre o festival. Traduzindo uma parte, as notas que deixou:
  • Admiravelmente, todas as pessoas locais estão cientes do festival e vão aos screenings.
  • Jogar às cartas é uma actividade normal para os adolescentes, durante os tempos mortos.
  • Os realizadores e directores de fotografia ficam nervosos em frente às câmaras.
  • O Diego Luna é bem parecido.
  • Toda a gente lambe um gelado entre as 17h e as 20h.
  • Um número significativo de surfistas hipsters emerge durante a swell hour.
  • É fácil intrometeres-te em festas do festival se tiveres uma câmara.
  • A vida é mais estranha do que a ficção.
Cartazes gigantes, salas luxuosas, passadeiras vermelhas, gente molhada em cima de pranchas, gente ao vento em cima de bicicletas, centenas de jornalistas de acreditação verde ao peito, bares de pintxos coloridos onde é impossível escolher o que comer, edifícios charmosos cor-de-areia, praia rodeada por pequenas montanhas de vegetação pinhalesca, um mar e um largo rio de cor tão pitoresca que aí podia ter sido filmado The Master, festas para tudo e mais alguma coisa, trocas de cartões por tudo e por nada, networking que passa de actividade aterradora para algo quotidiano, Annette Bening a ver The Face of Love sentada no meio do público (como se passasse despercebida), Hugh Jackman incrivelmente humilde e divertido, Denis Villeneuve a revelar-se um dos maiores cineastas de uma geração…

A secção em foco pela Nisimazine foi a prestigiada Kutxa – Novos Realizadores, que para além do prémio monetário que ronda os 100.000€ a serem repartidos pelo realizador e pelo distribuidor espanhol, pode catapultar os listados para a ribalta do cinema mundial actual. Por aí passaram primeiras ou segundas obras de nomes como: Pedro Almodóvar (Fuck Me…), Danny Boyle (Shallow Grave), Nicolas Winding Refn (Pusher), Thomas McCarthy (The Station Agent), Sarah Polley (Take This Waltz), Nadine Labaki (Caramel), Joon-ho Bong (Memories of Murder), entre tantos outros. 

Infelizmente, falhei alguns filmes que gostaria muito de ter visto (Japanese Dog, Las Horas Muertas, El Rayo e Of Horses and Men), mas considero um ratio pessoal impressionante, em seis primeiras/segundas obras, ter encontrado tanto valor.

 Luton (2013), de Michalis Konstantatos  Uma estrelaUma estrela½


Depois de 20 anos em coma, o cinema grego despertou, como paciente inglês que acorda a saber falar sueco, para uma nova linguagem e um cinema de identidade artística e social únicas. Apesar de Lanthimos rejeitar associações a qualquer movimento, a verdade é que Dogtooth, ao qual nem a conservadora Academia norte-americana ficou indiferente, lançou as bases para aquilo que já foi cunhado por vários críticos como a Greek Weird Wave. Konstantatos faz esse tipo de filme. Três personagens que, aparentemente, não têm nada em comum, encontram-se para, de forma fria, absurda e cruel, ensaiar um retrato do que acontece nas ruas das cidades gregas hoje em dia. Praticamente tudo é filmado em tempo real, com exaustão, repetição e desconserto dos bons costumes. A violência voyeurista faz-se por vezes acompanhar de punchlines das quais quase temos vergonha de nos rirmos (e.g., um travelling de aproximação, muito lento, de cerca de cinco minutos, num casal de adolescentes a dar um ininterrupto e vigoroso linguado, até que ela se descola e pergunta, “Do you love me?”) A tensão familiar bizarra, que também já conhecemos de Lanthimos ou Athina Rachel Tsangari, e a perversão sexual como metáfora da stasis para o sócio-político, deixou, a meio e no final da sessão, muita gente zangada.


 Paraíso (2013), de Mariana Chenillo  Uma estrela½


Uma história de amor entre um homem e uma mulher gordos e uma reflexão sobre a natureza da beleza. Uma premissa respeitável que prometia um twist francamente interessante à comédia romântica, designadamente pela densidade temática a que se propunha a chegar: noções conceptuais, psicológicas e emocionais daquilo que a sociedade contemporânea define como “belo”. Há ternura nos primeiros momentos (o casal faz amor, debaixo de uma luz quente, e é bonito) e honestidade no motivo que vai pôr a relação em causa (os dois decidem emagrecer; será por si ou pelo outro?). Mas tudo isso se desenrola numa série de acontecimentos maniqueístas, com o homem a revelar-se um personagem irrelevante e liso, em que tudo se resume a generalizações e estereótipos. Sem contribuição para a discussão para além de ideias pré-feitas como “os gordos adoram comer coisas deliciosas”, “a sociedade não gosta de gordos” e “a auto-confiança de um gordo está sempre dependente da comida”, torna o simples em simplista.


 The Gambler (2013), de Ignas Jonynas Uma estrelaUma estrela½


A promessa de uma trama moral de high-concept num contexto tão independente, deixou-me particularmente entusiasmado: com problemas financeiros, um paramédico cria um sistema de apostas com base na sobrevivência das vítimas que a equipa do hospital socorre. A primeira sequência é extraordinária, negra e dura, mas faz-nos julgar que o filme vai numa direcção completamente diferente. Ainda assim, somos capazes de nos reajustar: o fio condutor é essencialmente fresco e original, insólito até e é uma pena que levante vários problemas. As interrogações éticas sobre o valor da vida são tão literais que nos aproximamos da comédia negra do absurdo, um tom que é permanentemente travado por momentos demasiado sérios, por vezes melodramáticos. São interrupções que impedem o foco e, em vez de aprofundarmos, oscilamos, e o resultado são respostas igualmente literais (isto é, nunca chegam a ser respostas à moral, mas ao plot, como apresentar lucro de uma aposta concreta). As demasiadas personagens, que seriam o exército perfeito para uma mini-série, perdem-se em relações mal trabalhadas – o interesse amoroso do protagonista tem acções que esvaziam o impacto emocional do clímax (que é demasiado indulgente para uma peça tão violenta). 


 The Green Jacket (2013), de Volodymyr Tykhyy Uma estrela½


Não foi a única (e também não houve só duas) história de vingança pessoal como reacção ao rapto de uma criança. Uma rapariga perde o irmão num parque infantil e, durante anos, procura descobrir o que houve de estranho naquele dia e encontrar o culpado. Sete anos depois, convicta de que tem as respostas de que precisa, decide fazer justiça pelas próprias mãos. A principal insuficiência do filme é o facto de a família estar completamente indiferente ao que se passou, por já se encontrar destruída antes de tudo acontecer. Torna-se impossível encontrar contrapontos emocionais externas para pressionar a protagonista e o que se podia aproveitar da opção tomada, a solidão, não fortalece a trama. A dúvida nunca se assume parte de uma estrutura narrativa que nos envolva, antes se esvai em aleatoriedade.


 Mother of George (2013), de Andrew Dosunmu  Uma estrelaUma estrelaUma estrelaUma estrela


Dois anos depois se estrear no cinema com Restless City, em Sundance, Dosunmu e o seu director de fotografia, Bradford Young (que assinou Pariah, Middle of Nowhere e Entre Nos) levaram a segunda obra do nigero-americano ao pódio do festival do Utah para receber o prémio de Melhor Fotografia. Em San Sebastián, foi dos melhores filmes que vi. A história, que se passa numa comunidade nigeriana em Brooklyn, segue a luta íntima de um casal que não consegue ter filhos e os choques e consequências de se inserirem numa ondulação transcultural (pela imigração) e moral tão sufocantes. De magma melodramático, acaba por derreter quaisquer concepções de género pela ligação peculiar que estabelece entre a narrativa e a imagem (o realizador tem um background rico e curioso, como assistente de moda na Yves Saint Laurent, em videoclips, publicidade e fotografia). Cada plano é tão incrivelmente belo, tão elaboradamente composto (lembra-nos Wong Kar-Wai por várias vezes), que às vezes parece que não conseguiremos suportar o filme até ao fim – há momentos em que não conseguimos respirar por causa da imagem, como num grande thriller americano acontece com os twists, sem que aqui haja alivio de tensão. A escrita (da dramaturga Darci Picoult) e as relações progridem, assim, através da simplicidade de olhares, de confissões da voz e dos corpos, de esconderijos e subterfúgios que envolvem todos os personagens, e desenvolvem-se de forma envolvente entre dilatação narrativa e estruturas de plot mais familiares. A experiência cultural torna-se ainda mais rica com a permeabilidade da comunidade perante a subtil ocidentalização de alguns dos seus membros, inclusive o marido da protagonista, brilhante e silenciosamente interpretada por Danai Gurira (Michone de The Walking Dead).


 Wolf (2013), de Jim Taihuttu Uma estrelaUma estrelaUma estrelaUma estrela


Bem escrutinei as listas onde guardo tudo aquilo que vou vendo, mas não encontrei um único filme holandês dos últimos vinte anos. O que é o cinema holandês hoje, pensei? Ainda não sei, mas Wolf, um energético e competente filme de crime e acção, deixou-me pronto a arriscar. Vencedor do Youth Award, o realizador trabalha tecidos e conflitos multiculturais, tensão social, boxe e crime, optando pela câmara à mão a preto e branco, uma possível homenagem ao realismo gritty do anos 50 e 60 e à violência de Raging Bull. O marroquino e problemático Majid leva-nos a ritmo frenético por entre fugas à polícia, assaltos, violência na rua e no ringue, uma namorada vadia, uma relação complicada com o pai, sempre trocando os cartuchos, mergulhando cada vez mais fundo na sua personalidade beligerante. A certa altura a verdade é que esperamos mais no desenvolvimento dos personagens, que se regem sempre por motivações superficiais (dinheiro, sexo, ódio), sem se dedicar às subtilezas (por exemplo, apesar do filme opor minorias a minorias, teria sido de valor conhecer melhor o que é ser árabe na Holanda). 



Diogo Figueira licenciou-se em Junho 2012, em Cinema, ramo de Argumento, pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Trabalhou na distribuição internacional e na campanha aos Óscares de José e Pilar e nas primeiras fases de pré-produção do próximo documentário de Miguel G. Mendes, O Sentido da Vida. Trabalha agora em projectos pessoais.

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