Por Walter Neto, cinéfilo, licenciado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade de Coimbra com ênfase em Cinema.
Quais músculos da face reagem ao instante no qual uma pessoa, ou algum objeto, deixam de ser um pessoa ou objeto qualquer e passam a ser o centro de nosso afeto e atenção? Seria realmente possível determinar o exato momento no qual esse “encantamento” começa?
Divago sobre isso enquanto à minha mente vem a primeira vez que fui ao cinema. Meu pai me levou. Era uma sessão de O Rei Leão e a sala era um daqueles teatros da virada do século com camarotes e tudo mais que esses locais ofereciam. Assim que a sessão terminou, lembro-me de pedir para meu pai que mudássemos de lugar. Fôssemos para um daqueles assentos nos camarotes, “no alto”, e assistimos ao mesmo filme pela segunda vez, com minutos de intervalo entre as sessões.
E daquele dia em diante, nunca mais parei de ir ao cinema. Apaixonei-me por esse fenômeno na permanência da imagem na retina. Hoje, não penso em mim sem pensar em algum filme quase como uma extensão minha. E acredito que o mesmo se aplica a visão que meus amigos têm de mim. Bem, ao longo desses vinte e seis anos de vida, alguns amores vieram e se foram; permanecendo por mais ou menos tempo. Mas de alguma forma todos importantes. Mas todos esses, dividiram espaço com o cinema.
Talvez seja isso que torne a experiência de uma sessão como a de Azul é a Cor Mais Quente [A Vida de Adèle: Capítulos 1 e 2, em Portugal] ou Hoje Eu Quero Voltar Sozinho. Ambos possuem a pretensão de retratar o mais sutil e talvez importante dos sentimentos: a paixão. Mais que simplesmente filmar a paixão, em ambos os casos, os diretores, Abdellatif Kechiche e Daniel Ribeiro, escolhem um muso(a), uma pessoa que foi corajosa o suficiente para por sua vida nas mãos de outra pessoa. Talvez, este seja o único jeito de realmente nos conhecermos: «Je est un autre» já disse Rimbaud.
A maior proeza de La vie d'Adèle não é técnica, não é um plano sequência mirabolante de vinte minutos sem cortes, mas sim, conseguir tornar público o que mais há de íntimo. De externalizar o que é interno. Talvez a maior questão proposta pelo cinema em 2013 tenha sido a relação entre o sexo, explícito, e a nudez (sensações físicas), com a paixão (emocional). O sexo e o enamoramento ocuparam a mesma porcentagem de tempo em tela nos filmes em questão.
Abdellatif usa o sexo de forma explícita por saber o peso o “tabu” sobre o tema. Assim ele força com que seu público se sinta constrangido ao longo da projeção por compartilhar tamanha intimidade com desconhecidos em uma sala de cinema. Assim, entendemos na pele, o quão difícil é aquele momento de intimidade para as personagens, tão bem retratadas por Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux. É o primeiro amor de Adèle e é ponto de vista dele que importa e é ele que o filme seguirá. A verdade de Adèle que importa.
Aí o filme de Daniel Ribeiro dialoga com o vencedor da Palma de 2013. Leo (Ghilherme Lobo), um adolescente cego que tem em sua amizade com Giovana (Tess Amorim), todo o seu mundo. Mas isso muda com a chegada de Gabriel (Fábio Audi). Leo, assim como Adéle, descobre sua sexualidade, ao mesmo tempo, que sua homossexualidade.
Somos voyeurs dessa descoberta. Vemos Leo se despir, vestir uma blusa de Gabriel e se masturbar, da mesma maneira que vemos Adéle acordar excitada ao sonhar com Emma. Vemos a importância de pequenos toques, como as mãos de Leo e Gabriel que se tocam quando um empresta uma borracha ao outro. Assim como vimos Adéle e Emma deitadas em um parque rindo. Completas pela companhia da outra. Há uma cena em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, na qual Gabriel e Leo, após passarem o dia em uma piscina, tomam banho juntos e Gabriel representando o público, observa cada detalhe do corpo de Leo, cada milímetro da nudez de sua primeira paixão. Já Leo, devido a sua deficiência visual, é inocente a tal olhar, como aqueles personagens também são. Inocentes de que nós os observamos tão a fundo, tão a seco e sem alguma inibição seus mais íntimos segredos.
Hoje Eu Quero Voltar Sozinho começa e termina, simbolicamente, sem nenhuma imagem em tela. Apenas um fundo preto enquanto a faixa de áudio do filme ainda está presente. Uma pequena mostra do mundo de Leo, sempre no escuro. O que é maravilhosamente retratado quando seu pai atende a um chamado do filho que toma banho e pede ajuda para se barbear. Ao chegar ao banheiro, ele encontra o filho no escuro em frente a um espelho.
Mas talvez o que há de mais simbólico nessas telas sem imagem aconteça antes dos créditos subirem: O título do filme é alterado para Hoje Eu NÃO Quero Voltar Sozinho. A transformação de Leo está completa. Ele que começou o filme não apenas lutando por independência, mas vendo na solidão a única maneira de encontra-la, não é mais o mesmo. Já não pensa mais em ficar sozinho. Ele tem Gabriel.
E mais uma vez, o filme de Daniel Ribeiro dialoga em mim com o filme de Abdellatif, que também termina com o titulo inserido em uma tela preta antes dos créditos. Mas Adéle faz o caminho inverso de Leo. A sua transformação também está completa. Adèle já não é mais uma adolescente descobrindo o sexo. Já estamos ao fim do segundo capítulo de sua vida. Mulher e adulta, ela escolhe ir embora sozinha e abraçar toda a melancolia que vem a partir dessa escolha. São filmes independentes e sem nenhuma relação aparente entre as produções, mas ter visto Azul é a Cor Mais Quente antes de ver Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, possibilitou que eu entendesse mais da personagem “Leo” e o visse como um duplo de Adéle. Outra possibilidade aquele universo de descobertas e paixões.
Como já dito antes, são belos filmes, mas nem por isso experiências fáceis. É agridoce perceber que nosso primeiro amor, nosso primeiro beijo, primeira transa, já passaram. Não que os outros beijos, transas e amores sejam menores, mas uma vez perdida, a inocência da descoberta, não pode ser mais retomada. Um viva a esses dois filmes e histórias sobre os prazeres e dores de amar.
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