sábado, 7 de março de 2015

Escravo de Deus, por Carlos Antunes



Título original: Esclavo de Dios
Realização: Joel Novoa
Argumento: Fernando Butazzoni
Elenco: Mohammed Alkhaldi, Vando Villamil, Daniela Alvarado


Apesar do seu título de referência indivual, Escravo de Deus é um título que se aplica a ambos os homens envolvidos nesta perseguição.
Admed é o infiltrado na sociedade argentina, terrorista em dormência à espera de ser chamado. David é o agente da Mossad que não sabe estar em mais parte alguma.
Ambos são escravos de uma luta de religiões que os traz em suspenso em relação à possibilidade de uma vida normal.
Além dos extremos de "matar" e "morrer" a que estão dispostos, estes homens partilham o sacrifício das suas famílias.
Admed porque mente à mulher e ao filho desde o início quando os usou para criar uma fachada. David porque negligencia mulher e filho em troca da memória nítida daqueles que pretende apanhar e que o assombram da parede do seu gabinete.
Sendo mais semelhantes do que imaginam, estes homens são igualmente representativos da distância a que se colocam os peões do extremismo islâmico e judaico.
Persuadido a sacrificar-se em nome de Alá na sua juventude, quando ainda era incapaz de uma leitura correcta dos acontecimentos, Admed mostra o quão perigoso é a falta de interrogação de uma mente facilmente manipulável. Através dele a limitação das origens do terrorismo torna-se mais evidente na sua dependência de mentes imberbes.
David, pelo contrário, mostra a impossibilidade da mente judaica em seguir adiante, em superar a obsessão com a sua própria defesa. Tal como mostra que essa determinação ficou apenas para aqueles que guardam a memória da sucessão de inimigos para o povo de Israel sendo colocada de parte pelos que herdaram a memória - do Shoah, do massacre de Munique - que definiu uma identidade.
O contraste é usado em favor da discussão da essência do confronto que nasce de diferenças muito vincadas entre quem combate um preconceito injustificado que - na sua versão mais recente - dura há mais de um século e quem combate um inimigo recente que errou para com os povos árabes mas que também tem sido um inimigo de ocasião e de utilidade política.
Todo este confronto entre duas posições tão belígeras é importante para o próprio filme, pois ajuda a adensar a caracterização dos dois personagens que têm de ser, como se percebe, funcionais e representativos de identidades abrangentes.
Personagens entregues a dois actores que captam o olhar com grande intensidade.
Vando Villamil mostra que merecia há muito estar na memória cinéfila para lá dos territórios da América do Sul com uma conquista calma do espaço e do tempo de cena mesmo quando a sua personagem se envolve em momentos que se chamaria de acção.
A réplica de Mohammed Alkhaldi é extraordinária, por completo afastada da hipótese de revelar que se trata da sua primeira experiência de interpretação. O actor confronta e seduz a câmara e, com isso, o público.
Ao trabalho deles acresce o mérito do realizador Joel Novoa que lhes dedica cuidados de composição abdicando do espalhafato - da afirmação de poder que antecede os próprios atentados, por exemplo.
Ele trabalha as cenas de tiroteio com uma noção de eficácia que vem da experiência e que revela tanto sabedoria quanto desalento com a repetição daquele caos injustificado.
Apesar da sua juventude, Novoa tem a inteligência de trabalhar ambos os personagens em cenas que os desviam do caminho recto do julgamento de Correcto e Errado para fazer dos desvios morais que os afectarão algo natural.
A alegria do convívio entre Admed e os restantes membros sugere um gosto pela vida que a existência da sua família apenas reforçará. A indiferença com que David tira a vida de um informador mostra o quanto ele se move por objectivos muito mais egoístas do que profissionais.
Ambos os escravos de Deus acabam por se confrontar com as opções humanas que os comandam e que, no final, determinam as vidas humanas que destroem.
Embora a dúvida interna - sobretudo de Admed - pudesse ter sido explorada de forma mais vincada, no âmbito de um thriller as reflexões sobre os piores dos limites das convicções religiosas e políticas têm mais poder do que a violência representada e isso faz de Escravo de Deus uma convincente obra.




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