quinta-feira, 21 de junho de 2018

Entrevista com Donal Foreman, realizador de "The Image You Missed"

Donal Foreman passou por Portugal para a dupla projecção no IndieLisboa do seu filme The Image You Missed.

Um filme que, apesar da sua classificação de três estrelas, ficou como um dos filmes do festival que por mais tempo se inscreve na memória e que mais questões levanta acerca do próprio acto de filmar.

Aceitou sentar-se para uma entrevista durante a qual mostrou sempre disponibilidade para responder a perguntas que, como o seu filme, atravessavam a fronteira entre o realizador e o homem.

Perguntas pessoais que, em alguns momentos, obrigaram-no a ele próprio a levar a reflexão sobre os temas que nos expôr um pouco mais longe do que tinha feito até aí.

Para aqueles que tiveram a oportunidade de ver o filme, esta será por certo uma entrevista que aprofundará os temas do filmes e as motivações do realizador.

Esta entrevista teria, idealmente, sido publicada mais perto do festival. Por motivos pessoais tal não foi possível, mas a relevância da entrevista não se perdeu.



Photo by Conor Horgan






Este filme existe porque teve de vasculhar as imagens do seu pai sem conhecer, de facto, o homem por detrás delas. Qual foi a sua abordagem inicial ao material?

Alguns meses depois dele morrer, tive a oportunidade de ir ao apartamento dele e verificar os pertences dele. Entre eles estavam os seus arquivos de filmes e fotografias guardados de uma forma muito desorganizada.
Nessa altura a minha abordagem foi determinar o que era cada peça e retirá-las do apartamento pois tínhamos de o esvaziar para o vender.
Tratavam-se, sobretudo, de questões práticas. Onde vamos colocar tudo? Podemos confiar o material a um arquivo?
Pelo caminho também estava a aprender sobre ele. Tinha curiosidade acerca dele e ao vasculhar o material ganhava discernimento acerca da vida dele.
E há por certo uma experiência estranha e espantosa de estar construir uma imagem de alguém com quem se tem uma relação mas não se conhece realmente a partir de descobertas entre o material.
Essa experiência representou as fundações do filme, onde eu quis traduzir a experiência desses eventos.



No filme está, a certo ponto, à procura da cara do seu pai nas imagens. Conseguiu chegar a compôr uma visão do homem ou apenas do realizador que ele foi?

Eu diria que o homem e o realizador estão interligados.
O que eu obtive foi uma visão incompleta e fragmentada acerca dele.
Para mim, como realizador, é uma maneira muito interessante de conhecer alguém. Perceber o que escolheu filmar e para onde o seu olhar era atraído.
Mas há muitas coisas que não podia ficar a saber, que não podia descobrir através daquele material.
Ele não tinha quease nenhum filme caseiro.
Havia milhares de fotos mas ele, por norma, tirava fotos quando viaja. Do que via na rua.
Havia muito poucas imagens da sua intimidade, nas fotos e nos filmes.
Havia muito pouca informação acerca da vida quotidiana dele, de como eram as suas relações, de quem o rodeava. Grandes quantidades de informação em falta...
Eu fiquei com uma percepção dele mas muito incompleta. É por isso que digo, no filme, que estou a construir uma ficção de quem ele foi.



Deu-me a sensação, a partir das cartas do seu pai à sua mãe, que ele era algo frio a propósito da sua vida pessoal. E disse agora que ele não a registava, apesar de ser cineasta e fotógrafo.
Acha que ele se sentia mais como um artista distanciado do que como um homem de carga sentimental?

Não tenho a certeza. Ele estava muito comprometido com o seu cinema, era essa a sua paixão.
No entanto, ele tinha muitos amigos, tinha casos amorosos... Não é como se na vida dele a componente pessoal estivesse ausente.
Mas era algo em que, claramente, ele não estava interessado em reflectir.
Quer a sua vida pessoal, quer a sua relação pessoal com o material e os indivíduos por que ele se interessava. Tudo estava focado no assunto do trabalho.



Precisamente, The Image you Missed afirma-se como um “film between”. Significa isso que o aspecto de tanto você como Arthur MacCaig serem cineastas se mostrou mais relevante do que serem pai e filho?

(Depois de uma pausa mais longa para reflectir)
Não diria que é mais importante. Mas por certo não teria feito o filme se ele não fosse realizador. Se fosse só para fazer um filme acerca do meu pai...
Foi a intersecção dos elementos pessoais, políticos e cinematrográficos que me inspiraram, que me fizeram sentir a necessidade de fazer o filme.
Portanto, eu penso que é impossível para mim separar as duas ligações entre nós.
Seria um filme completamente diferente se fosse meu pai mas não um cineasta. Seria um filme completamente diferente se fôssemos apenas cineastas, sem a ligação pessoal.



Acha então que não teria chegado a fazer o filme se ele tivesse filmado muito material mas não com propósitos cinematográficos?

Acho que se ele tivesse filmado muito material, então seria um cineasta.
Da mesma forma que no filme está o material em Super 8 do meu tio, irmão da minha mãe! Eu penso nele como um realizador, apesar de ser material amador.
Também é verdade que estava muito motivado a fazer o filme porque, para além de haver uma ligação pessoal, ser uma forma de eu reflectir nestas questões políticas e de realização de um filme...
Que são muito importantes para mim!



Sabe dizer em que ponto o mexer com o material do seu pai se transformou na necessidade de uma reflexão mais abrangente acerca de como ambos abordam o cinema?

Acho que desde o início. Assim que comecei a pensar em fazer um filme usando o material dele, eu soube que iria lidar com estas questões políticas e cinematográficas.
E sabia que iria ter um estilo fragmentado e usar elementos da abordagem do filme-ensaio.
Isso era algo que eu não tinha feito antes e desde a partida que pensei nisto como uma forma de me desafiar como realizador e desafiar-me em novas direcções visto nunca ter feito nada similar.



Este era para ser um diálogo entre vocês os dois mas a partir de um certo momento do filme parece-me que existem mais pontos de colisão do que convergência entre ambos.
No final ainda sente que se concretizou um diálogo ou foi mais uma discussão?

Claro que, a um nível primordial é um diálogo entre mim, eu próprio e eu (me, myself and I).
A voz dele no filme, mesmo sendo tirada das cartas e entrevistas dele, foi algo que eu editei e construí.
A minha narração também é uma versão de mim mesmo que eu editei e construí...
Não há nada directamente ficcionalizado em relação aos factos da história... Mas estes são personagens ficcionalizados. Que eu criei.
Mas penso nele como um diálogo pois para mim houve um câmbio entre... a visão dele e a minha... no sentido em que eu estava a permitir que o ponto vista dele penetrasse no meu e também vice-versa.
Um diálogo nesse sentido mas não de reconciliação.
Eu creio que a reconciliação é uma ideia essencial ao filme mas eu nunca esperei ou desejei um sentimento de... conciliação dos pontos de vista ou criação de uma síntese de ambos.



Seria justo dizer que, no final, este filme mostrou que acabou por se revelar mais realizador do que filho? Ou concluiu o contrário, que não conseguiu transformar o realizador daquele material num pai?

Não acho que se pode levar alguém que não quis ser um pai a transformar-se em tal. Sobretudo já estando falecido.
Eu penso nele como pai no sentido... factual. Biológico!
Há aí uma certa ligação que é interessante para mim explorar. Mas isso é distinto do papel social de um pai...



Não chegou então a conseguir transformá-lo numa figura paterna de alguma substância?

Bem, ele é certamente uma figura paterna...
É complexo, claro. Ele nunca cumpriu com o papel de pai.
Mas uma figura paterna é uma ideia. Podes ter uma figura paterna que nunca conheceste...
Ele é uma figura paterna no sentido em que há uma ligação e ele representa uma geração mais velha.
Uma maneira diferente de fazer as coisas, uma certa posição de autoridade.
Há todos estes aspectos do posicionamento dele no filme que são paternais.



De qualquer forma, a parte de leão da forma como processou a ausência do seu pai fica de fora do âmbito do filme. Foi uma opção deliberada, de forma a dar o maior foco aos outros temas do filme ou foi algo que teve de acontecer muito antes de se sentir capaz de trabalhar com os materiais dele?

Até certo ponto é verdade que sinto que não tinha um turbilhão interno ou fortes sentimentos por resolver acerca dele quando iniciei o filme.
A principal razão para limitar o tratamento desses temas emocionais no filme foi por sentir que era mais eficaz aludir a eles do que explorá-los a fundo.
Acreditei que estabelecendo apenas os factos essenciais da situação estava a criar uma atmosfera forte em que o público ainda conseguiria sentir muitas das emoções subjacentes
E, também, relacionar-se com a situação. Na minha experiência, até agora, isso sucede muito, os espectadores pensam nas suas relação familiares a nas suas histórias.
Quis deixar espaço para se formarem essas conexões com o filme.




Voltemos ao material sobre o qual trabalhou. Afirma que Arthur MacCaig, enquanto realizador, tinha um forte fascínio com a imagética do conflito da Irlanda do Norte.
Vê esse fascínio tanto como a sua força como realizador e a sua fraqueza enquanto cineasta?

Acho que é justo dizer isso.
Por um lado ele tinha uma opinião muito pensada acerca do conflito. desde o início.
Ele tinha ideias próprias sobre a contra-narrativa que ele queria produzir e a intervenção que queria fazer através do seu cinema.
Por outro lado acho que também se pode ver uma fascinação algo primal com as imagens.
Há uma romantização. Pode ver-se que nos filmes dele há imagens de homens armados com máscaras e crianças a brincar.
Temas deste género que são repetidos num excesso que vai para lá dos objectivos políticos ou contextuais que possam ter.
Há um verdadeiro fascínio e foi algo em que eu tentei reflectir no filme.
Há uma cena do filme em que a narração dele é retirada do argumento de um filme de ficção que ele escreveu.
O argumento é sobre um jornalista irlando-americano que tem uma relação amorosa com uma revolucionária basca. Uma espécie de versão ficcionalizada da sua carreira, visto que ele também fez muitos filmes sobre o conflito basco.
Há uma cena [do argumento] que ele está a observar uma mulher através de uma gravação na sala de edição e achei que isso era interessante...
Um dos poucos momentos em que ele reflecte acerca das suas próprias relações, com o conflito e conectando-o a uma relação amorosa, o que sublinha um romantismo a vários níveis.



Fica satisfeito que o seu documentário divulgue o trabalho do seu pai ou tem alguns sentimentos contraditórios a propósito de estar a promovê-o sem ter uma relação plena com ele?
Por outro lado, enquanto cineasta, sente algum receio que as pessoas vejam o seu trabalho e retenham, sobretudo, o dele?

Não tenho nenhum problema com isso. Eu acho que diversos filmes dele são significativos e meritórios.
Sobretudo o primeiro filme dele, The Patriot Game, que eu acho que é muito bom. Em termos do conflito e da História da Irlanda do Norte é, objectivamente, um bom filme.
Mesmo se me merece algumas reservas. Críticas que eu faria à sua abordagem, ao seu estilo, à sua análise....
Eu sinto que os filmes dele merecem maior reconhecimento. Fico feliz do meu filme ser uma passagem que permite isso mesmo.
Penso, também, que é uma introdução ao trabalho dele nas minhas condições. Se forem ver os filmes dele, foram ver primeiro o meu!
Isso enquadrará a maneira como os filmes dele são olhados.
Espero em alguns festivais projectar, também o filme dele, The Patriot Game, juntamente com o meu.
Na Irlanda o filme estreará comercialmente mais perto do final do ano e o Irish Film Institute comissionou-me uma programação de filmes sobre o conflito para fazer a contextualização do meu.
Irei projectar diversos filmes menos conhecidos, sobretudo dos anos 1970 e 1980, e o The Patriot Game fará parte desse lote.
Portanto não tenho qualquer desejo Edipiano de remeter o trabalho dele ao esquecimento.
Se sentisse isso, não teria feito este filme.



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