domingo, 18 de dezembro de 2011

Melancolia, por Tiago Ramos


A melancolia de que fala o título é bem mais que o planeta que ameaça colidir com a Terra. Aliás, é bem mais ainda que o estado depressivamente catatónico experienciado de certa forma pelas duas protagonistas (numa primeira instância e clinicamente falando, mais em Justine que em Claire). Melancolia é um filme à (e sobre a) deriva e ainda bem que o é. O que Lars von Trier faz aqui é encenar o apocalipse: de um casamento, de uma família, de uma relação, de uma personalidade, do mundo. O apocalipse existe, de início, naquele magnífico prólogo (a juntar ao igualmente requintado prólogo de Antichrist), de forma operática, ao som de Wagner e do seu Tristão e Isolda, enquanto se observa aquele inverno retratado por Pieter Brueghel, o Velho, na pintura Caçadores da Neve. O apocalipse é todo aquele destino magneticamente trágico.

A colisão que é iminentemente recordada nesse prólogo é igualmente a colisão de duas irmãs, entre si e contra elas próprias. Irmãs essas protagonizadas por Kirsten Dunst (retrato de uma depressão tão cruelmente genuína - que lhe valeu a Palma de Ouro em Cannes 2011) e Charlotte Gainsbourg (em agonia consigo própria e contra a consciência da ausência do controlo que outrora teve), ambas com uma das melhores performances do ano em cinema. Curioso que Lars von Trier tão bem as opõe, dividindo o seu Melancolia em dois capítulos portadores dos seus nomes - Justine e Claire. A mesma Justine que inicia o filme numa quase-referência a The Celebration (1998), de Thomas Vinterberg, num casamento que é um micro-cosmos da sua vida, mas também do trágico destino do planeta. Logo ali, na brilhante cena da limusine, o destino está fadado. A melancolia de Justine que a leva a um profundo estado de depressão é perfeitamente recriada pela metáfora do planeta que absorve o ar da Terra e gravitacionalmente atrai o que está próximo, resultando num impacto que tudo absorve. A mesma Claire que se vê conscientemente auto-controlada na primeira metade do filme, para depois entrar num pânico enorme de quem se vê inevitavelmente condenada a um destino que não deseja (de quem tem algo a perder). Pois Justine não o tem e Lars von Trier ironicamente provoca o espectador.

Dizem os mais puristas (dever-se-ão chamar assim?) que, ao abandonar o terreno do Dogma 95, Lars von Trier perde também a noção do seu cinema mais genuíno. Se o perde ou não, far-nos-ia entrar no terreno ambíguo da definição de cinema e genuíno. Mas na verdade, este terreno que o cineasta mais abertamente começou a abraçar em Antichrist (2009), revela-se também num dos mais inquietantemente trágicos (e belos?) e filmes. Ao olharmos para o Lars von Trier de há uns anos atrás nunca conseguiríamos imaginar neste magnífico trabalho de montagem, conjugado com esta assombrosa fotografia (Manuel Alberto Claro ou este trabalho no que diz respeito ao design de produção. Tecnicamente irrepreensível. Mas também não conseguiríamos imaginar que com tão grandiosa equipa técnica conseguiria fazer o mesmo que fazia: provocar de forma tão niilista. Lars von Trier não faz mais que nos provocar a nós espectadores (nós que tantas vezes o criticamos) com o aumento (quase telescópico) das nossas próprias falhas morais. São essas falhas que nos conduzem ao extremo estado de impotência, a esta apocalíptica melancolia ou dormência com que nos defrontamos assim de quando em vez. «Estamos sozinhos», diz Justine. E perante tal trágico destino, resta-nos encontrar esta serenidade perante o apocalipse.


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