terça-feira, 17 de março de 2015

Citizenfour, por Tiago Ramos

  

Título original: Citizenfour (2014)
Realização:  

O ecrã preto e a voz off contextualiza-nos a gravidade da situação e os antecedentes da própria realizadora Laura Poitras que descobriu que o seu nome fora incluído numa lista de alerta máximo do Departamento de Segurança Nacional, como consequência de ter realizado dois documentários incómodos sobre a América pós-11 de Setembro: My Country My Country (2006), sobre o Iraque e The Oath, sobre o Iémen. Citizenfour é o culminar dessa trilogia e também o pseudónimo de Edward Snowden quando, em 2013, iniciou uma troca de e-mails encriptados com a documentarista, alegando ter na sua posse informação ultra-confidencial e de extrema gravidade, que poderia mudar o Mundo tal como o conhecemos. O documentário não é um glorificar da figura de Snowden como o grande herói contemporâneo e nem um discorrer acerca das consequências do seu acto. É antes um retrato de um homem aparentemente frágil e os momentos que antecederam a sua revelação ao grande público, elaborando um ponto de vista íntimo que tenta descodificar esta intrigante figura. A câmara concentra-se naquele quarto de hotel em Hong Kong com um registo quase paranóico e uma tensão rapidamente incutida ao espectador, que vive o filme como se de um thriller ficcionado se tratasse. Logo no início somos confrontados com um cenário que nos parece de terror e que tanto nos incomoda.

Mas Citizenfour é acima de tudo um filme com um grande valor histórico, sobretudo pela forma como documenta os bastidores de um momento extremamente importante da História recente. É um retrato de coragem e que levanta uma intrigante questão pessoal e social: a partir de que momento reconhecemos que queremos deixar de ser meros peões nas mãos da sociedade política? A partir de que momento nos dissociamos das nossas responsabilidades contratuais, para assumir uma responsabilidade social? Até que ponto devemos abdicar da nossa própria privacidade em favor de uma suposta paz? Até que ponto estamos dispostos a aceitar as consequências (também pessoais) de uma decisão tão fracturante?

Edward Snowden continua a ser uma figura por descortinar. Informante, "vendido" como espião, com sede de protagonismo. Mas não é bem isso que encontramos aqui. Estamos perante um homem jovem, ponderado, estranhamente culto e que responde com grande desenvoltura às questões de Laura e dos jornalistas Glenn Greenwald e Ewen MacAskill, apesar de afirmar muitas vezes o contrário. A documentarista também não nos dá uma visão pessoal acerca desta figura, mas deixa-nos tentar conhecê-lo através dos seus actos: quando a sua identidade é revelada, a sua cara encontra-se em todos os serviços noticiosos do Mundo e o telefone do quarto de hotel insiste em tocar, vemos um homem ao espelho muito mais preocupado com o seu cabelo que com as consequências dos seus actos. Este homem é um quebra-cabeças, com peças que faltam e outras difíceis de encaixar. Não o percebemos, mas estamos absortos no que ele nos transmite, estamos intrigadíssimos, estupefactos. Ainda existem pessoas assim? Que motivação é esta? Quem abdica assim da sua vida em prol de um sentido de justiça que nos parece surreal?

Laura Poitras capta tudo com uma tensão excitante, com um terror sempre subjacente, com uma paranóia constante (começamos a pensar: Devia desligar o telefone fixo da tomada? Devia passar a ter cuidado com o que pesquiso no Google? Não devia deixar qualquer aparelho electrónico quando saio de casa?), mas consegue transmiti-la com um fundamento. Não é nunca sensacionalista, trabalha com factos, discute um tema delicado e fá-lo com mérito. Termina com uma questão que deixa ao espectador: ainda há mais a descortinar? Há algo ainda maior que estes homens e mulheres que deram tudo pela verdade? No final, Glenn Greenwald fala com Edward Snowden acerca dos mais recente eventos, sem nunca verbalizar os dados mais importantes. Escreve num papel e rasga-o em pedaços pequenos. Apenas vemos as reacções de um e outro. Na mesa a câmara foca um pequeno pedaço de papel: lê-se POTUS (President of the United States). E o espectador fica sentado na cadeira, sem saber muito bem o que acabou de ver.


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