domingo, 8 de março de 2015

Natan, por Carlos Antunes



Título original: Natan
Realização: Paul Duane, David Cairns
Argumento: David Cairns
Elenco: Serge Bromberg, Gisèle Casadesus, Niall Greig Fulton


Natan é um dos melhores e mais desafiantes filmes que o público português verá este ano, sobretudo aquele com uma maior militância cinematográfica.
O filme é um documentário em torno de um produtor essencial para a História do Cinema Francês que só será descoberto através deste trabalho.
Só isso chegaria para tornar o trabalho especial no coração dos cinéfilos, só que o trabalho em torno da sua vida vai revelando temas de reflexão que são definidores do século XX e dos seus avanços, até mesmo no campo do Cinema.
Bernard Natan é o responsável pela criação de uma indústria cinematográfica em França, pelo avanço dessa arte para o campo do negócio que a tornou duradoura.
Neste filme ficamos a saber como foi a reacção europeia ao nascimento da indústria americana e, por acréscimo, ficamos igualmente a saber como esta se reaproveitou do que se fazia deste lado do Atlântico.
Uma lição de inovação técnica e esforço artístico no cinema francês que é apaixonante e que coloca Natan como um dos apelidos a memorizar e a conhecer a fundo.
Só que são os próprios franceses a crer que Pathé é o nome por excelência de tal feito, quando foi Bernard Natan quem levou essa marca mítica para diante.
Obrigatório reconhecer que foi por questões financeiras - nascidas de uma visão ele teve e que Pathé não - que Natan terminou afastado da memória pública, muito embora o contexto da altura, com o avanço Nazi, tenha ajudado.
O julgamento de Bernard Natan poderá ser considerado um segundo Affaire Dreyfus, para dar uma referência clara do que lhe foi feito por ser judeu. Mas com resultados ainda mais graves.
Muito mais do que pela morte que ele havia de sofrer num campo de concentração, o resultado grave deste caso contra o do século XIX está na manipulação que tudo sofreu.
Não foram apenas falsificadas as provas contra Natan mas foi manipulado o registo fílmico do seu julgamento e, depois disso, apagado o seu nome de todos os registos acerca do cinema.
Num meio estruturante como esse foi para a memória do século XX, haver quem possa ser eliminado - mesmo sendo parte integrante dele - é uma surpresa tão grande quanto a própria fragilidade do conceito de verdade em filme.
A história é escrita pelos vencedores. Em certos casos, como fica demonstrado, esta continua a ser indevidamente escrita - melhor seria dizer apagada - pelos vencidos. Neste caso os colaboracionistas e os Franceses que lucraram com o ataque aos Judeus.
Isso acontece, sobretudo, porque quase ninguém está disposto a questionar a História e a procurar figuras como aquela aqui retratada.
Nunca, nem mesmo através de documentários, se atingirá uma verdade livre de interpretação e/ou manipulação.
O problema é quando a manipulação é técnica e lançada como a verdade, pois isso é quase impossível de contrariar.
Os realizadores mostram no documentário o excerto filmado do julgamento de Bernard Natan que foi mostrado ao público da época. E depois revelam a verdadeira filmagem do mesmo, demonstrando que a voz havia sido alterada de forma a que esta cumprisse com o estereótipo do "ridículo judeu".
Não apenas à época mas tambám no momento presente, os que escrevem sobre cinema parecem capazes de utilizar os fotogramas contra Bernard Natan, fazendo dele o actor de filmes pornográficos de qualidade rasteira.
No filme há a comparação de fotografias de Natan com as feições dos actores de tais filmes e é quase impossível não admitir que a única semelhança é um perfil de cara, em mais um preconceito acerca dos judeus e do seu nariz.
Paul Duane e David Cairns estão dispostos a defender Bernard Natan, embora não estejam a tentar limpar a sua imagem e torná-lo num herói.
A dupla não deixa de reconhecer, cumprindo com a exigência do olhar documentarista, que Bernard Natan teve os seus momentos de erro, fosse quando foi preso em posse de material pornográfico fosse quando cometeu uma ilegalidade para salvar da ruína os estúdios Pathé-Natan.
Uma das opções estéticas, de colocar um actor com uma máscara inspirada nas feições de Bernard Natan, é prova disso mesmo. Num reflexo da procura tanto das verdades como das falsidades de Gainsbourg (Vie héroïque), esta figura sobre a qual pende ainda tanta incerteza surge representada ao mesmo tempo com monstruosidade e com afectividade, pois ambas parecem ser características a ele atribuídas.
Só que eles, tal como o público acabará por fazer, reconheceram que Natan foi um homem cujo castigo superou em muito qualquer crime que pudesse ter cometido.
A injustiça que o próprio Cinema cometeu para uma das suas figuras essenciais havia que ser corrigida e se não o será por completo através deste filme, terá de continuar a partir dele e enquanto a verdade estiver esquecida e os mitos forem reproduzidos.
Se alguma vez será possível conseguir a correcção dos segundos pela primeira é uma questão difícil de responder através de uma previsão presente.
Aquilo de se tem a certeza é que Bernard Natan se importava em absoluto com a preservação da memória daqueles que contribuíram para que o Cinema fascinasse o público e, por isso, merece ele próprio que tal honra lhe seja garantida.
Se mais não fosse, porque o próprio Natan nunca deixou que Georges Méliès - o homem que o fascinara pela cinema - acabasse na pobreza e só isso merecia uma retribuição de igual medida mesmo a esta distância da sua morte.




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