segunda-feira, 15 de junho de 2015

É Difícil Ser Um Deus, por Carlos Antunes



Título original: Trudno byt bogom
Realização: 
Argumento: Aleksey GermanSvetlana Karmalita
Elenco: 


Há uma enorme dificuldade em desviar o olhar de É Difícil Ser Um Deus, mesmo quando o filme exige já a resistência do espectador.
Apesar das imagens à nossa frente serem daquilo que se pode considerar o limite do nojo num mundo novo que facilmente confundimos com o nosso próprio passado.
Um mundo assente em lama onde o comportamento dos seus habitantes faz da merda uma matéria quotidiana, enquanto o desejo do sangue se torna impossível de travar.
A Idade Média recriada em exaustivo detalhe e nós lançados sobre ela brusca e inapelavelmente.
A rejeição que o nosso instinto faz de tal mundo é superada pelo seu fascínio decalcado num preto e branco que dá dignidade - e até um certo brilho - às matérias menos nobres.
Dentro deste mundo somos levados por uma espécie de guia, Rumata, que deveria ser um mero observador mas agora batalha por poder depois de ter sido confundido com um deus.
Mais do que por um percurso, somos levados pelos seus instintos e vontades. Pelas decisões que toma a partir da sua posição e que terminam muitas vezes numa violência opressiva e injustificada cujo prémio parece não ser mais do que o deleite na porcaria que fica agarrada a uma bota que pontapeia um traseiro nú.
Os seus movimentos por este mundo que sobrecarrega o ecrã parecem os de uma criatura abrindo uma fístula entre imagem e público.
Ora o olhamos de longe, nós próprios observadores tentando ser objectivos e conter a nossa repulsa, ora estamos tão perto dele que o seu corpo nos ocupa (e disforma) a visão, tentando perceber se é obsessão ou claustrofobia o que então sentimos.
O trabalho de câmara executado por Aleksey German é imersivo, não sendo tal conclusão um imediato elogio.
Na verdade, parecemos estar a seguir um ponto de vista subjectivo de alguém que persegue a aura de Rumata mas é incapaz de a aceitar em pleno.
Apêndice ao pseudo-deus, muitas vezes obrigado a olhá-lo de baixo senão mesmo de um ponto onde se esconde da sua raiva que não poupa sequer um servo que nunca o questiona.
A história que German nos quer contar é relativamente simples, a sua essência retirada dos livros de História onde se repetiu ao longo de séculos.
Afinal o filme era para ser uma metáfora a propósito de Estaline e quanto finalmente foi concluído mais parece um retrato de quem tem agora as rédeas do poder na Rússia.
Só que o realizador não aceita entregá-la de forma fácil, sem nos obrigar primeiro a uma dose de confusão que nos ponha a jeito para a rendição na batalha pelos nossos sentidos que ele travará.
Este filme serve esse propósito de dar a sentir, em meras três horas, as emoções conflituosas que outros vivem décadas a fio.
Com o trabalho sonoro meticuloso e inclemente que, com a câmara manejada sempre fora de qualquer suporte, nos puxa para o meio do mundo onde somos obrigados, em constância, a olhar para algo mais num campo de visão que nunca tem espaços desimpedidos ou, pelo menos, aprumados.
Só mesmo a própria presença de Rumata - servida por um marcante Leonid Yarmolnik - luta pelo nosso olhar com o mundo levado ao ponto de ter verdadeira vida.
Meia dança com a realidade, meia batalha com a consciência, toda ela é o desvario de quem pôde tudo e teve de permitir que a Razão (até dele próprio) fosse destruída pela natural violência do mundo ao seu redor.
Pela sua essência repartida entre a Ficção Científica e a História este é um aviso do Futuro e um retrato do Passado (ou, quem sabe, o seu preciso oposto). Levados ao extremo!
Extremo que torna o filme um desafio tão grande quanto a recompensa que tem para entregar ao público que resistir e persistir.





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