sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Porto/Post/Doc 2015: as histórias que contamos


Há um par de anos, a actriz e realizadora canadiana Sarah Polley lançou um trabalho que dissertava sobre a incerteza das memórias pessoais e a forma como vamos ficcionando aquilo que nos acontece e que é, portanto, real. As razões para o fazermos poderão ser muitas, mas aquilo que Polley nos mostrava era que as barreiras entre o documentário e a ficção são ténues e que o nosso próprio cérebro funciona exactamente da mesma forma. Em Stories We Tell (2012), a realizadora viajava pela sua infância, partindo de fotos, filmes e entrevistas à sua família e encenando até alguns momentos. A cada entrevista o espectador ia-se apercebendo das múltiplas e distintas percepções da mesma realidade, a partir de cada membro da família. 

A segunda edição do Porto/Post/Doc que passou pela baixa portuense recentemente partia do mesmo princípio. Ou não lançasse o mote "as nossas histórias são reais" como veículo promotor do certame. E as histórias, projectos, filmes e vidas,programadas para esta edição assumiam bem esse lado documental, da constatação da realidade, desde os mais pequenos até aos maiores eventos da vida, do particular para o global. Mas vai também para além disso e aborda muito a percepção que temos das memórias: uma reinterpretação da realidade, como se a vida fosse ficcionada ou como se a ficção fosse real. O real e o imaginário: são o mesmo. Não há barreiras.



Partindo (propositadamente ou não) da ideia deste Stories We Tell, a portuguesa Catarina Mourão apresentou A Toca do Lobo. Um filme muito pessoal e que segue a investigação da realizadora sobre as memórias da sua própria família, especialmente as da mãe, partindo de um álbum de fotografias e velhos filmes familiares, que denotavam a ausência do seu avô, aquele que conhecemos como o escritor Tomaz de Figueiredo. Com muita sensibilidade e emoção, vamos seguindo as pistas que a realizadora nos dá, ao mesmo tempo que ela e a sua mãe as descobrem. A dada altura, o espectador apercebe-se de um dado muito curioso: a percepção que temos das memórias de infância, não é necessariamente a real. É uma transformação mental da realidade, aquilo que o nosso cérebro preferiu absorver com vista a justificar eventos mais, ou menos, traumáticos. A família de Catarina poderia ser a nossa, com esqueletos no armário, com família que não se fala, com segredos nunca desvendados, com objectos que pertenceram a outra geração. O processo é também ele terapêutico, a forma de suprir um vazio: o emocional, de um pai que nunca se teve; o informativo, de uma ausência constante.


É também de vazio que muitos dos filmes programados no Porto/Post/Doc falavam. Anabela Moreira, actriz (e agora também realizadora, substantivo que esta descarta, porém), falava, numa sessão de Q&A após Portugal - Um Dia de Cada Vez, precisamente desse vazio. Da necessidade, enquanto actriz de suprir um vazio e uma ausência, que são especialmente seus. É sob essa perspectiva e no âmbito da preparação de um outro projecto de João Canijo, que Anabela partiu, para o Norte do país especialmente, filmando um dia da vida de uma pessoa ou família. Canijo falava de uma série de televisão, que está praticamente concluída, onde se pretende seguir as descrições bucólicas e deslumbrantes do Guias de Portugal, fazendo um contrastante entre o edificado de outros tempos e o agora. Mas as mais de trezentas horas de filmagem que Anabela trouxe sozinha, ganharam força própria e acabaram por ignorar o edificado em favor das pessoas que o rodeiam. É um filme sobre o abandono e de um Portugal muito nosso, esquecido e rural, histórias reais e emocionantes, divertidas, comoventes ou devastadoras. De carácter episódico, mas onde a solidão e o trágico fado português imperam, o filme acaba por se tornar pouco constante e demasiado longo, especialmente devido a uma falha de ligação mais consistente.

Sobre a ausência e memórias, em Exotica, Erotica, Etc., uma prostituta brasileira compara os marinheiros a terroristas. «Chegam aos portos com uma bomba chamada amor e atiram-na. A bomba explode quando eles se vão embora e não voltam mais, destruindo os corações de todas as meninas da vizinhança. Quão estranho - amar alguém que te paga...». Com uma direcção de fotografia surpreendentemente arrebatadora e um trabalho sonoro e de edição notáveis, a realizadora grega Evangelia Kranioti elabora um ensaio sobre o romance, o desejo e o passado. Mais romântica que sexual, seguimos uma viagem num navio, que percorre vários portos e continentes, sob o voice over de Sandy, uma velha prostituta, que eloquentemente recorda os seus amores perdidos.

Killing Time: Entre Deux Fronts permitia-se também ele a uma visão sobre o vazio. Daí que a sua realizadora filme sobretudo as suas personagens por trás, uma visão incisiva sobre a nuca, muitas vezes. Eles são soldados, marines, vindos do Iraque ou Afeganistão e que param na base militar de Twentyne Palms para visitar a sua família ou para descansar entre missões. O que é mais visível ali é a distância emocional criada pela sua distância física. Não é, portanto, de estranhar as cenas que uma criança parece não reconhecer o seu pai ou que um dos familiares compara a confusão de uma reunião de família à vida numa base militar num país em guerra. Ao enquadrar o espectador no seu quotidiano, expõe-se também o absurdo de uma vida, país e política dedicada à guerra.


Guerra é também a interna, a experienciada e provocada pelos seus cidadãos. Cartel Land explora a problemática dos cartéis de droga no México. Um tema inúmeras vezes explorado no cinema, da qual conhecemos sobretudo os seus lugares-comuns, mas que por exemplo este ano viu uma perspectiva (ficcionada) mas bem mais negra e moralmente complexa em Sicario. O documentário de Matthew Heineman estabelece um ponto de vista maior sobre o domínio dos cartéis dentro do próprio México e como a perda de esperança nos poderes legais permitiu a ascensão de milícias de autodefesa. Se inicialmente parece-nos que Heineman tenta defender um ponto de vista norte-americano e unilateral, acabamos por perceber que o discurso talvez não seja tão tendencioso assim. Com imagens devastadoramente belas, de uma câmara frequentemente em movimento, somos contrapostos ao absurdo de uma guerra que se inflama por ela mesma. Um registo de um sistema viciado, de um problema de solução extremamente urgente e aparentemente impossível, de um povo descrente e fracturado, onde os heróis são vilões e os vilões são também eles heróis. Experiência esmagadora e revoltante, Cartel Land merece uma análise imperativa.

A programação do Porto/Post/Doc assentou ainda grandemente sobre o tema da iconografia. Toponimia elabora, por exemplo, num registo austero e geométrico, uma visão sobre o absurdo de um conjunto de pequenas povoações em Tucumán, na Argentina. Criadas para conter e desaparecer a guerrilha (daí que receberam o nome de militares mortos nessas operações), os planos fixos dessas cidades dão um olhar sobre a ditadura e permitem o contraste entre a passagem do tempo e a imposição histórica do nome. Igualmente iconográfico e, simultaneamente, registo do absurdo, Las Vegas in 16 Parts também se permite, a partir de pequenas vinhetas temáticas, traçar um retrato daquela cidade inúmeras vezes imortalizada e romantizada pelo cinema. Luciano Piazza contrasta o meio com o ser humano, propondo um diálogo entre o espectador e o imaginário colectivo.


Também de ícones fala Thom Andersen, cineasta de acutilante pensamento político, e que mereceu um foco neste festival. Estabelece-se um paralelo entre o filme de Luciano Piazza com Get Out of the Car (2010) do norte-americano: uma viagem sobre os ícones perdidos de Los Angeles, os outdoors, os néons, os cinemas perdidos, as bombas de gasolina abandonadas. Uma visão, por contraste, da gentrificação de uma cidade e da evocação de uma nostalgia de um tempo perdido. The Tony Longo Trilogy é, como o programa antevia, sobre um actor que é um axioma do cinema de acção: o gigante guarda-costas que não serve para o papel. Um filme que é uma ironia sobre o cinema de Hollywood, elevando esta sátira ao nível da high art. Em Juke: Passages From Films by Spencer Williams, Andersen evoca, a pedido do MoMA, o actor e realizador afro-americano Spencer Williams como pioneiro contra o conservadorismo do monstro de Hollywood. Os excertos dos seus filmes recordam-nos o lugar da cultura negra na sociedade americana, na década 40. Esta meia hora de cenas conectam-se muito bem com outro dos pontos altos da programação do Porto/Post/Doc: a exibição da cópia restaurada de Come Back, Africa (1959), de Lionel Rogosin. Híbrido de documentário e ficção, o filme utiliza não-actores e filmagens clandestinas da África do Sul durante o apartheid, a narrativa segue a história de sobrevivência de um homem numa sociedade desigual. Um filme de uma beleza terrível e de uma heroíca mensagem política.

Com um tom mais luminoso estiveram dois filmes do certame, que podem ser vistos como crowd pleasers. Nunca de um ponto de vista pejorativo. Los hongos, integrado na secção Teenage do festival, é uma história de coming of age de dois jovens graffiters, que crescem numa sociedade podre. Os hongos do título são precisamente cogumelos, que crescem e proliferam na matéria morto. Uma metáfora perfeita para um filme que não deve ser visto apenas como uma narrativa amigável, já que a mensagem política que transmite não é, com certeza, inócua. Também Mother's Wish, documentário de encerramento do festival, não perde de lado a emoção. Feita de relatos de mulheres, mães, por todo o mundo (passa também por Portugal, onde ganhou uma co-produção de Rodrigo Areias), com uma direcção de fotografia de tirar o fôlego, o filme ganha uma dimensão simbólica quando sabemos que a mãe do próprio realizador, Joonas Berghäll, faleceu no dia em que este viajaria para o Porto, para apresentá-lo. Ainda assim, Mother's Wish sustenta-se a si próprio e deixa o espectador inúmeras vezes à beira das lágrimas, mas também de coração preenchido com alguns momentos ternos.


A segunda edição do Porto/Post/Doc mostrou ainda um festival ainda mais integrado na cidade que o acolhe. À luz de um Porto cada vez mais aberto à Cultura, como agregador do povo e como factor educacional, muito do trabalho programado recorda Paulo Cunha e Silva, vereador da Cultura do Porto, recentemente falecido e cujo contributo é extremamente espantoso. Por isso que uma sessão dupla do festival, no Maus Hábitos, tanto simbolizou: Bairrismos, de Pedro Neves (secção Cinema Falado) e Cercados (secção Transmission), de André Tentúgal e Vasco Mendes. Ambos dialogam perfeitamente entre si, como retrato de uma cidade cada vez menos fechada sobre si, mas também com algumas problemáticas que necessitam de acção rápida: os bairros sociais. O primeiro é um mosaico de testemunhos de moradores de alguns dos bairros da cidade (uns de um cariz mais positivo e como testemunho da integração, caso do Rainha D. Leonor; outros gravemente esquecidos, como o São João de Deus); o segundo é um dos projectos de integração social dos jovens do Cerco. OUPA! é um projecto colectivo, apadrinhado por André Tentúgal (dos We Trust, que assina o documentário) e Capicua, que resultou numa residência artística, com workshops de escrita criativa, edição de vídeo e outros, e que se concluiu num projecto musical arrojado e que usa a música como redenção. Dá gosto ver uma cidade virada para o futuro, mas também um festival consciente do poder da Cultura como mais do que um repositório de filmes, mas com uma programação como pilar para a construção de uma sociedade melhor.

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