sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

"Spotlight": Sexo, mentiras e catolicismo

Por Miguel Stichini.

Para um jornalista há uma linha que separa o acto de reportar uma história que poucas pessoas conhecem e o de dar a conhecer dimensões demasiadamente horríveis de uma história que muitos conhecem, mas que são incapazes de assumir. Acreditar em algo não é fácil. Por vezes, a nossa crença enfrenta uma perseguição injusta e por vezes é testada. O mundo tende a alinhar-se rapidamente em frente aos crentes com pedras na mão, com completa noção de quem irá atirar a primeira pedra. A história universal encontra-se repleta de desafios para os devotos. É muito difícil de se preparar para a dor que poderá provir de dentro de uma instituição. Mais difícil ainda é prepararmo-nos para uma luta após aprendermos que a nossa comunidade nos deixou para trás.

Thomas McCarthy e Josh Singer desenvolvem um retrato disso mesmo, de forma intrincado para assegurar que não seja visto como um ataque flagrante à Igreja Católica. É inegável que a sua presença em Boston, encobrindo um conjunto de crimes graves, roça a máfia local. No entanto, ambos fazem-no enquanto recusam explorar a narrativa que gratuitamente fazem da Igreja um vilão. O verdadeiro vilão deste argumento é a ideia de sigilo institucional.

Firmemente, os cineastas concentram-se na investigação da equipa Spotlight do jornal Boston Globe e as provações emocionais que esta enfrenta. Trata-se de um filme de elenco, onde todos os envolvidos se aproximam do material da melhor forma possível e sem perder um pingo de intenção astuta pelo caminho. Em vez de se perder por entre meditações sobre as virtudes do jornalismo de tempos antigos, celebra pessoas que mudaram o mundo, dia após dia, com trabalho, suor e lágrimas.

Fascinante, e potencialmente controversa, a obra de Thomas McCarthy está entre as melhores representações do jornalismo americano no grande ecrã. Ela merece ser mencionada no mesmo fôlego que Zodiac (2007), de David FincherThe Insider (1999), de Michael Mann e All the President's Men (1976), de Alan J. Pakula, enquanto melhores exemplos do género. Contém personagens ricamente e subtilmente detalhadas que investigam algo bem maior que os seus egos, recorrendo à sua fé na verdade e na justiça para superar o medo, abuso e complacência para com um dos mais horríveis crimes alguma vez cometidos. Ninguém se encontra acima da equipa ou da história, nem o elenco, nem os cineastas.


O argumento dá-se ao luxo de abordar um tema que todos nós já vimos e ouvimos inúmeras vezes e ainda assim conseguir aguçar o nosso investimento emocional. Detalhe após detalhes, tudo nos é apresentado. Qualquer pessoa que tenha o menor interesse nesta história deixar-se-á levar às memórias sobre os vários escândalos da Igreja Católica ao longo dos anos, a quão profundo esse buraco é. Quando uma das personagens finalmente explode perante tais atrocidades e o quão impregnadas estão na nossa sociedade, nós estamos tão irritados, frustrados, tristes como ela. O filme leva-nos pela mão, passo a passo, através da agonizante história. Não há nada de novo, mas ainda assim encontra uma forma de nos deixar com um nó no estômago.

Será porque nos apercebemos que grande parte da verdade se encontra encoberta por privilégios? Confidencialidade entre cliente e advogado, uma instituição que se protege a si mesma. Serão actos postos em prática para evitar a acusação, tornando difícil processar aqueles que realmente merecem a totalidade da acusação? Como se os padres ao saírem do confessionário olhassem para nós, relembrando-nos que há segredos que não podem ser partilhados.

Tudo isto leva-nos a um sentimento de remorso, pois nós sabíamos, todos nós sabíamos e nunca dissemos ou fizemos nada. Em vez disso, encolhemos os ombros, negamos e recuámos. Mesmo que não seja na nossa religião, as dezenas de actos hediondos que ocorreram afectaram pessoas não tão distantes de nós. Fica então a questão: teremos nós colocado em causa e na corda bamba o jornalismo investigativo? Os acontecimentos desta história têm catorze anos, mas podiam ter quarenta considerando a forma como o jornalismo em papel mudou. Nos dias de hoje, pessoas são julgadas e condenadas em menos de 160 caracteres, antes mesmo de qualquer facto ser conhecido.

Michael Keaton atinge novamente o seu expoente máximo pelo seu humanista retrato de Walter Robinson, amplamente porque a sua personagem, a contrário de Riggen Thomson em Birdman, nunca é demasiadamente dramático ou surge enquanto peixe fora de água. Enquanto isso, Mark Ruffalo faz um excelente trabalho enquanto um jovem jornalista, que foge ao cliché do repórter presunçoso ou engraçadinho que genericamente é retratado em Hollywood. Rachel McAdams presenteia-nos com um dos seus melhores e convincentes trabalhos da sua carreira. O mesmo se pode dizer de Brian d’Arcy James. O desempenho de Liev Schreiber é o mais bizarro, com uma personagem rígida que tenta não ser invasiva, mas que acaba por nos roubar a atenção cada vez que surge.


Spotlight ousa abordar um tema peculiar, evocando sentimentos de tristeza, desgosto, confusão, raiva e arrependimento. Ao longo dos anos, vários foram os documentários focados no escândalo de abuso sexual da Igreja Católica, mas Thomas McCarthy decide agora examinar o assunto incidindo sobre os esforços de uma pequena equipa de jornalistas focada numa teia de conspiração. É um filme que tinha o direito de ser inteiramente sisudo e deprimente, mas que se torna no oposto.

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