segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

The Danish Girl: "Contra a hegemónica heteronormativa hollywoodiana"

Por Miguel Stichini.

Um filme que se preze tenta desenvolver uma ilusão de espelho da sociedade, oferecendo os seus pontos fortes e os seus pontos fracos ao escrutínio criterioso com a esperança de criar um mundo melhor. Ou simplesmente fornece um sentimento de entretenimento ultrajante que nos permite colocar de parte os nossos problemas por umas horas, enquanto nos deixamos deliciar pelas imagens e pela história.

O argumento adaptado de Lucinda Coxon, ao tentar desenvolver uma história que se enquadre no primeiro grupo, torna-se obediente às várias provocações e desafios que o casal de protagonistas enfrenta com a estrita linearidade da sua história. Diria mesmo que se torna rigidamente mais documental que ficcional. A sua estrutura narrativa aborda a progressiva jornada de mudança de Einar para Lili, mas sem nunca conseguir obter um ritmo orgânico que preencha os espaços em branco de um possível e convincente arco interno.

Por uma questão de foco e impulso, Lucinda Coxon poderia ter eliminado um conjunto de narrativas românticas paralelas que nunca chegam a lado algum. Existem momentos sucintos onde palavras são trocadas entre uma mulher atormentada e a pessoa que outrora fora o seu marido. A situação irretratável de alguém preso dentro do corpo errado surge com eximia exactidão. Depois, esse efeito rapidamente desvanece com one-liners que ameaçam neutralizar o factor surpresa.

É difícil entender de forma adequada a frustração e admiração que o filme de Tom Hooper tenta transmitir. Por um lado, a representação de um transgénero/transexual numa Europa na segunda década do século passado é algo refrescante, ainda que contido. No decorrer da acção não surgem inúmeros discursos de falso moralismo ou demasiadamente melodramáticos. Por outro lado, trata-se de uma história contada através de uma perspectiva de alguém que se pôde dar ao luxo de se submeter a uma intervenção de mudança de sexo e de estatuto social, sem grandes barreiras impostas pela sociedade.

Para um filme que retrata a história de uma das primeiras pessoas a transitar de sexo fisicamente, ela nunca nos transmite uma sensação de medo ou dificuldade face a algo que ainda hoje é extremamente difícil de concretizar. Não deveria ser uma história sobre o sofrimento, por si só, mas não deveria surgir como algo banal. As coisas nem sempre são cor-de-rosa para o protagonista, mas certamente que existirão momentos penosos e trágicos durante a sua jornada e esses nunca nos são apresentados.


Ainda assim, tecnicamente este é o trabalho do sobrestimado Tom Hooper que consegue atingir mais notas certas. O realizador opta por colocar de lado os seus floreados visuais mais irritantes de forma a criar um sentimento mais genuíno, mais imponente. O cineasta decide remeter sua tendência de recorrer a uma gama cinzenta e a espaços de uma negatividade inútil, que nos remetem para uma teatralidade amadora, a um canto deixando que aquelas pessoas ganhem vida e a história surja o mais natural possível.

Enquanto estudo de empatia o filme apresenta-se imparcial e inteligentemente evita tomar o partido de um dos protagonistas. Valentemente conta-nos uma história que precisava ser contada, ainda que o faça mais sobre a perspectiva de Gerda. A transformação de Einar em Lili não contém material suficiente para que se torne em algo profundo e que responda a todas as nossas perguntas. Contudo, é um testamento à versatilidade de Eddie Redmayne que consegue criar mais camadas a uma personagem que rapidamente se poderia ter tornado oca. O actor aceita novamente uma personagem que o desafia fisicamente. Ele consegue adoravelmente jogar com os seus traços andróginos e maneirismos femininos, criando duas personagens discretas, recatas e apaixonadas. Numa das cenas mais marcantes do filme, vemos Einar a visitar um peep-show, enquanto tenta duplicar os gestos da performer atrás do espelho.

O título do filme poderia estar no plural, pois o trabalho de Alicia Vikander não deve ser desvalorizado de forma alguma. A actriz consegue de forma exímia e repleta de nuances retratar uma mulher que se balanceia entre um sentimento de culpa auto-imposta, decepção e lealdade para com os desejos do marido. Argutamente o argumento não a transforma em algo unidimensional; ela suporta o marido de forma incondicional, ao mesmo tempo que o vê fugir-lhe por entre os dedos e com o decorrer da acção apenas a sua solidão persiste.


Dos actores secundários destacam-se três: Matthias Schoenaerts é sedutoramente viril e apresenta uma mentalidade bastante aberta para a época enquanto Hans Axgil, amigo de infância de Einar e futuro amante de Gerda; Ben Whishaw carrega uma sensibilidade intrigante como Henrik, o primeiro amor de Lili; e Amber Heard adiciona um toque de energia e frescura na pele de Ulla, uma bailarina de espírito livre e amiga próxima do casal de protagonistas.

The Danish Girl, tal como um grande artista, tenta ver o mundo a partir de inúmeras perspectivas. Enquanto tenta compreender a sua própria identidade, desenvolve em nós uma sensação de empatia para com a rebeldia e as normativas, os adaptados e os que não se deixam rotular, entre a ténue linha que separa os sexos socialmente estabelecidos.

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