Título original: Jia
Realização: Liu Shumin
Argumento: Liu Shumin
Elenco: Shoufang Deng, Lijie Liu, Xiaomin Liu
Cinco horas é duração de um épico. Pese embora a ausência de uma aventura de grande escala, Jia é esse épico.
Há uma viagem, uma singela visita de um velho casal aos seus filhos, os dois que já se casaram e fazem as suas vidas em grandes cidades.
Há uma missão, o casal pretende pedir auxílio financeiro para a sua outra filha, que precisa de remodelar uma casa para deixar (de novo) de morar com eles.
O que ocupa tantos minutos é a preparação desse desenlace, o reestabelecer da relação entre duas ou até três gerações de uma mesma família para que a pergunta possa ser feita.
Não é um confronto mas é certamente um jogo de paciência entre os personagens que, com as suas tão diferentes características, estão também a expor um retrato abrangente da China que tende a estar menos retratada nos filmes que vemos por cá.
Uma China na vertigem da ascensão social e da afirmação económica e não o país da população esquecida (vale a pena recordar Três Irmãs).
Nesta obra a actualidade chegou em força e pela presença de Deng e Liu descobre-se que o novo-riquismo de Fucheu ou a enormidade de Xangai representam uma forma de egoísmo nascido da mudança de cultura.
A necessidade de dar nas vistas da primeira filha, que prefere oferecer prendas caras aos pais a emprestar o dinheiro à irmã, sinaliza a conclusão que se tira quando a visita chega a Xangai e ao filho que se afirma por viver na cosmópole (logo, na aparência do cosmopolismo).
Num apartamento mais exíguo do que o da vila dos seus pais, ele rejeita a ideia de continuar a família, e a realidade é agora idêntica à da cultura ocidental.
A casa tornou-se uma agregação de casulos isolacionistas: cada um fechado no próprio quarto a ver televisão.
Para o filho, aquele é um espaço para estar, com o mínimo de funcionalidade e conforto. Terá de ser o pai a intervir para lhe simplificar a vida e ganhar espaço na cozinha - ainda e sempre o centro de qualquer casa, em qualquer parte do mundo.
A progressão de um lar até uma casa marca a própria cadência das relações entre gerações cujo fosso etário é cada vez maior.
Nisso se vê que a influência de Ozu não está apenas na dinâmica com que Liu Shumin motiva o reencontro de gerações. Está na forma como o realizador entende o espaço da casa.
Um espaço - quando existe! - onde há um eixo que liga as divisões em contínuo porque a casa é o espaço que une as vidas familiares.
A família não cabe toda numa mesma divisão e, por isso, existe em conectada através das portas deixadas abertas e do posicionamento das estruturas essenciais.
Dentro de casa passam-se as cenas mais fascinantes do filme. De tal forma envolvido, o público deixa de dar conta que está perante eventos numa tela.
Diante dos olhos está a realidade, particular àquela família, mas universal pela partilha de atitudes e formas de estar que se reconhecem da vida comum.
Essa sensação nasce dos dois actores centrais, cujas interpretações se tornam comportamentos instintivos de cuja honestidade não temos como duvidar.
Liu Shumin torna ainda mais intenso o conforto deixando correr o tempo dos planos para captar a naturalidade de Deng e Liu.
Os cortes e a montagem viriam dissipar a hipnose de olhas aquelas vidas. Dentro de casa não há ficção.
Tal sensação é importante pelo contraste que cria com os momentos que ocorrem na rua. Nada de peripécias, um deles até de união familiar em torno de um jogo de cartas.
Nas cenas de exteriores a família pode estar, de facto, junta, todos num mesmo enquadramento e não no posicionamento que o realizador, apesar de tal ser quase invisível, tem de preparar para as cenas de interiores.
Por mais belos que sejam alguns destes enquadramentos na rua, são momentos que não devíamos presenciar.
Voyeurismo social, filmado por entre ramos de árvore ou à distância, porque culturalmente não é na rua que aquelas interacções acontecem.
Dentro de casa o espectador pode estar muito mais confortável. Lá é o espaço natural das relações familiares.
O embaraço que se pressente quando a família está na rua faz com que se chegue perto do intransmissível pudor emocional da cultura asiática.
O que vem tornar mais importante o que se vê dentro de casa, onde afinal a tradição resiste por entre a afirmação da classe média.
A ideia de núcleo familiar é trazida à evidência pelo casal que crê e insiste de forma genuína na preservação do respeito pelos anciãos e pela lealdade fraterna.
Fá-lo de forma simples, intervindo sem ser solicitado, mostrando-se útil em vez de ser colocado à margem.
São os tais gestos naturais - e universais - que neste caso até são mais significativos em Deng, por ser a matriarca. O chegar e colocar o avental para preparar o pequeno-almoço ao genro ou ensinar a nora a cozinhar.
Liu e Deng pela sua viagem unem as restantes vidas no mesmo fio. Essa é a obrigação - e a vontade, por certo - dos pais, pois os filhos devem procurar a sua independência.
O que eles tentam é transmitir uma última réstea de funcionamento comunitário que permita que cada nova família exista, com alguma aproximação, como as que a antecederam.
O filme indicia essa impossibilidade da família resistir como se idealiza, de resistir como é da tradição chinesa.
Culpa do desequilíbrio da chegada da riqueza generalizada para uma parte da população ou pela abertura a um ideário ocidental.
Um desequilíbrio que já está no interior da família de Liu e Deng, eles próprios incapazes de abdicar de alguma dose de ostentação na construção da casa da filha mais velha, mesmo se têm de pedir dinheiro aos restantes filhos.
O final do filme olha para o desequilíbrio mais vasto, fazendo colidir a família que acompanhámos com outra vertente da China.
A de uma classe social que ainda vive receosa e incapaz de lidar com qualquer desvio à normalidade (restritiva) do quotidiano.
O final fala-nos ainda da família, já com a crueldade da dúvida.
Um outro núcleo familiar, bem mais frágil, não mereceu a nossa atenção e acaba por ter de persistir, para lá do âmbito do olhar, com um peso bem maior que só desejamos que não a afligir o elemento mais desprotegido dessa outra família.
Um núcleo familiar que, esse sim, faz recordar os papéis tradicionais, em que uma mulher (fala-se do género, não da maturidade) cozinha e um homem se isola ao fim do dia de traalho.
Uma outra família à beira da tragédia, tão intensamente olhada e esquecida naqueles poucos minutos finais de filme que afecta de forma profunda e quase faz a tragédia que se abateu sobre Liu ou a maravilha de acompanhar a viagem dele e Deng.
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