quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Despojos de Inverno, por Tiago Ramos



Título original: Winter's Bone (2010)
Realização: Debra Granik
Argumento:
Debra Granik e Anne Rosellini
Elenco: Jennifer Lawrence, John Hawkes e Garret Dillahunt

Ainda estávamos em Janeiro de 2010 e Despojos de Inverno era tido como um dos favoritos na corrida aos Óscares 2011. Estreado no Festival de Sundance, o filme não manteve o estatuto de preferido até ao fim da corrida, dada a sua estreia precoce e à afincada concorrência, mas mesmo assim conseguiu arrancar quatro nomeações em categorias principais (Melhor Filme, Melhor Argumento Adaptado, Melhor Actriz e Melhor Actor Secundário).



Assente na nova sensação do cinema independente, Despojos de Inverno está longe de ser um feel good movie do género. É sim, pelo contrário, um dos filmes mais fortes e contundentes do ano que desmistifica o conceito de american dream – cada vez mais inexistente – e aborda a América perdida, em plena recessão, dramática e despojada. O drama da protagonista é o drama do interior empobrecido da América do Norte. Em plano de fundo, os Montes Ozark, numa atmosfera fria e nebulosa. O Inverno. O inverno da alma. O lado sombrio do Missouri. O lado negro dos humanos, das famílias. À adolescente Ree cabe-lhe o peso do mundo nos ombros, o sustento da família em meio a uma mãe em estado vegetal, dois irmãos mais novos e um pai desaparecido que colocou a casa como garantia do pagamento de uma fiança. A ela não lhe é dado espaço para ser adolescente e para sorrir.

Debra Ganick já tinha agradado no Festival de Sundance com Down to the Bone (2004) onde venceu o Prémio de Realização, com a história de uma mulher casada que tenta desesperadamente esconder o seu vício das drogas do marido, mas que com a chegada do Inverno, a situação torna-se insuportável. Daí que depreende-se – talvez precipitadamente devido à curta filmografia da realizadora – que esta é exímia em retratar essa problemática individual, essa dor interior e força de superação em clima de instabilidade. Este Despojos de Inverno não é assim tão diferente no seu cerne. Daí que consiga tornar-se um portento de filme – sem grandes alaridos, convenhamos – mas totalmente contido. É um filme que se revela a pequenos passos, vagarosamente, ao espectador, assente especialmente no clima atmosfericamente depressivo e frio. Um trabalho de abstracção individual bastante competente e rico, dentro de toda a sua simplicidade.



Obviamente que Jennifer Lawrence – a grande revelação do ano – tal como a sua personagem suporta o peso da responsabilidade precoce, suporta o filme. Num sofrimento contido, mas uma coragem e força imensuráveis. Uma interpretação sóbria, mas absolutamente estrondosa – seguramente uma das melhores do ano, deixando o espectador com um nó na garganta. O mesmo com um irreconhecível John Hawkes, que acabou por merecer o reconhecimento com uma nomeação ao Óscar de Melhor Actor Secundário.

Também o argumento de Debra Ganick e Anne Roselinni, adaptado do romance de Daniel Woodrell é bastante competente na forma simples como contribui para criar um grande filme. As personagens, mesmo que nunca intimamente exploradas – ao contrário da Ree – transmitem a verdadeira noção da história ao contribuir para o sentimento de individualidade e independência apresentado pela protagonista, logo no início, quando a realizadora a filma como durona, solitária, destemida, a cada passo que sobe e desce a colina. É possível, a cada frame, a cada avançar da lenta narrativa, observar o desespero de toda a comunidade, o seu lado sombrio, mas ao mesmo tempo não se perde apenas nessas ambiências, focando-se no estritamente necessário e indo directo ao assunto: o drama pessoal da protagonista. Daí que se torne competente na sua finalidade e evitar os lugares comuns de argumentos do género que se baseiam em meros artifícios como forma de ocultar a (fraca) qualidade da história. Também a fotografia, da autoria de Michael McDonough (dos segmentos “Shunji Iwai” e “Allen Hughes” de New York, I Love You) é igualmente fantástica e preponderante na construção do cenário e ambiente vividos em Despojos de Inverno. Fria, sombria, nublada, amplifica toda a tensão do filme.



É claro que o filme está longe de ser arrebatador. Dada a sua simplicidade e temática, faz recordar o cinema de Kelly Reichardt (Old Joy e Wendy and Lucy), no seu despojo e na forma como filma a América escura e negra a que não estamos habituados. Ou ainda Frozen River (2008), filme que deu a primeira nomeação ao Óscar para Melissa Leo, há dois anos. O que por si só é bom, mas não alimenta toda uma audiência sedenta por histórias fulgurantes e arrebatadoras. E é realmente pena, porque temos aqui um filme poderoso, lento, actual. Uma história de superação e determinação que demonstra vontade em recuperar esse lado decaído da América perdida.

Classificação:

9 comentários:

  1. É daqueles filmes que não tenho bem a certeza se vou gostar - por aquilo que já li, pelos trailers - não sei. Também digamos que a nossa disposição tem de ser a melhor para vermos este tipo de filmes e acho que eu neste momento não consigo ver filmes algo depressivos :S

    ResponderEliminar
  2. Eu não achei o filme deprimente. Pelo menos de uma maneira geral, não é esse o sentimento que prevalece no filme.
    Não fosse o facto de querer ver o True Grit que estreia hoje, era certinho que iria ver este uma segunda vez. Vale bem a pena. Que personagens. Já o vi há quase um ano e há cenas, muitas, que ficaram gravadas de forma tão vívida na minha mente, como se o tivesse visto na semana passada.

    ResponderEliminar
  3. Das melhores críticas que já li no vosso blog. Gostei imenso do filme, mesmo e identifico-me com tudo o que disseste ;)

    ResponderEliminar
  4. Gostei muito da crítica, Tiago :)

    Partilhamos sem dúvida a mesma opinião sobre o filme e até a nota (isso seria um 7-8, não é? Um B+, portanto). Eu adorei a Jennifer Lawrence, admito que se calhar é uma interpretação um pouco overrated mas carregar um filme às costas aos 20 anos de forma tão irrepreensível e tão subtil, quando havia imensa oportunidade para, como se diz, "comer o cenário"... É impressionante.

    Além disso, o elenco é genial, em particular John Hawkes e Dale Dickey.

    Acho que para um pequeno filme independente é um trabalho impressionante. Um argumento sólido, um elenco unido e que funciona bem em conjunto e uma direcção cuidadosa, aliados a uma banda sonora excelente e uma fotografia impecável (excelente uso de tons).

    ResponderEliminar
  5. A nota é um 8. Para a escala de 10 é sempre o dobro.

    Eu adorei a Jennifer Lawrence e tenho pena que este ano esteja entre tão boas concorrentes, porque ela merece muito. E sim, concordo contigo. Obrigado.

    ResponderEliminar
  6. Admito que me surpreendi. Gostei muito!

    ResponderEliminar