sábado, 18 de junho de 2011

Viagem a Portugal, por Carlos Antunes


Título original: Viagem a Portugal

Começo por dizer que gostaria de gostar muito mais deste filme do que ele permite, nem que fosse somente pelo belo preto e branco que sublinha a aridez, material e moral, daquele espaço do aeroporto em que a humanidade está colocada em causa.
Reconheço no filme algo mais, uma ideia de realização que seria muito mais perniciosa para o debate de consciências, mas não lhe reconheço nenhum mérito por isso pois, ainda que não surja por acaso, não é pensada em consonância com as restantes ideias do filme.
Ao falar um pouco sobre o filme antes da sessão começar, o realizador sublinhou como este objecto cinematográfico se distanciou das convenções. Sublinhou, acima de tudo o resto, a busca do efeito de distanciamento de acordo com Brecht.
Procurando tal efeito, o realizador chegou a uma ideia de montagem do filme que escapa à norma mais comum. Uma montagem interessante pelos seus possíveis efeitos.
Ao interromper as cenas com apagamentos da imagem, Tréfaut trouxe para a tela o próprio "flash" da consciência do espectador.
A isso acrescenta a repetição de cenas que desmascaram a importância da percepção externa de qualquer acção de uma determinada personagem.
Repetição essa que funciona melhor quando há uma variação no teor da cena do mesmo ponto de vista em vez da repetição com a troca do plano pelo contra-plano.
E funciona em dar-nos a noção de como a angústia de um personagem pode ser a expressão de raiva para a personagem que a enfrenta (na interpretação) ou como a calma confiança pode ser passada como velada arrogância.
Isso consegue o filme através de pequenas nuances dos seus actores - magníficos os três, já agora - que logo transformam uma cena de pedido de piedade numa cena de início de confronto.
Através de tal mecanismo e da disponibilidade dos actores, ficam as emoções em xeque e tornam-se as personagens menos mecanicistas.
A percepção - ou mais ainda, a dúvida - sobre o confronto entre as razões das personagens e as suas intenções e sobre o difícil equilíbrio entre a compreensão do indivídio e a sua necessidade de cumprir o seu dever deveria estar aumentada pelo próprio mecanismo do filme.
O facto de ninguém se ter comportado a todos os tempos da forma mais correcta até acabaria sublinhada pela revelação do que a personagem de Maria de Medeiros fez depois do episódio que nos é mostrado.
Contra esta forma de impôr o distanciamento que serviria para tornar o espectador num crítico da emoção, em vez de se deixar levar pela empatia com as personagens, está a intenção muito evidente do filme.
Intenção de denúncia do vazio legal no tratamento de alguns estrangeiros no interior dos espaços do aeroporto, um pouco por todo o mundo.
Aí o filme distingue, claramente, bons e maus e provoca a empatia com os emigrantes à medida que vinca a frustação causada pela personagem de Isabel Ruth. O filme lança-nos a ideia de que a mulher que tenta fazer cumprir as normas que tem no seu trabalho foi a única a comportar-se incorrectamente.
Aliás, a própria Isabel Ruth acabou por falar, também antes da sessão começar, contra a sua personagem dizendo dela que tem falta de alegria e compaixão. Vale a pena perguntar, se é a própria actriz que lhe dá corpo a vê-la assim, como poderá o público vê-la com mais do que essa dimensão?
Dimensão que até teria, mulher de pena e, eventualmente (o filme não o consegue dizer), a servir uma Lei que não prevê eventualidades que se encaixam em zonas que não as definidas a branco ou preto.
O problema é que a consciência do filme também não o vê.
A idealogia do filme nega a sua forma e digo-o assim mesmo porque se há algo a ser lembrado é a montagem e não a denúncia.
No entanto é precisamente esta última que levará o filme a várias mostras de cinema sobre direitos humanos, mesmo quando este desbarata alguma da sua melhor matéria-prima, não explorando a forte ironia desta história se passar quando Portugal se preparava para receber a Exposição Mundial de 1998 e aceitava muitos outros estrangeiros para trabalhar nas suas obras ou, acima de tudo, não sublinhando o facto de, num filme que trata da emigração, os problemas de comunicação não terem origem apenas na falta de uma base linguística como também na transmissão da emoção pretendida através dos gestos e dos movimentos corporais.

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