domingo, 13 de maio de 2012

Nana, por Carlos Antunes


Título original: Nana
Realização: Valérie Massadian
Argumento: Valérie Massadian
Elenco: Kelyna Lecomte, Marie Delmas e Alain Sabras

A longa introdução de Nana não poupa o público a uma visão integral da matança do porco, deixando-o desconfortável com a informação errada.
Não é o sangue em abundância que deve deixá-lo desconfortável, mas antes o facto das crianças serem o público privilegiado daquela actividade secular.
Desconfortável porque, na nossa sociedade, as crianças estão enclausuradas num ambiente tão asséptico que qualquer elemento natural parece violento.
Mas esses elementos chocam mais os adultos do que as crianças que, entretanto, os olham com a simplicidade que lhes pertence quase em exclusivo a elas e que torna todos os elementos novos numa fonte de espanto, primeiro, e entendimento, depois.
Essa é a história que Valérie Massadian tem para contar na sua forma mais directa, um mergulho de uma criança na natureza e na naturalidade.
Com quatro anos e vendo-se sozinha depois do desaparecimento da mãe, Nana repete o que aprendeu por viver com a família. Dos actos mais simples e que se ensinam em família – vestir-se como a mãe a vestira ou “ler” a história de um livro que a mãe lhe lera – aos mais raros e que só se esperam que sejam feitos por mãos experientes – recolher madeira para acender a lareira e lá colocar um coelho (apanhado numa armadilha) para lhe retirar o pêlo, como vira o avô fazer com o porco, logo de início.
Compreende que as tarefas lhe cabem agora a ela, numa espera pela mãe que não é tão chocante para Nana como é para o público, que se interroga (por momentos) como pode alguém abandonar assim uma “criatura indefesa”.
A mãe já havia surgido subitamente para a levar do convívio com o avô e desaparece de forma igualmente brusca. Para Nana essas mudanças significam apenas que a vida continua e continua em torno da única constante, que é ela própria.
Trata-se do seu instinto de sobrevivência, essa forma natural que ela tem de tratar o seu mundo isolado da mesma maneira que tratava o mundo quando estava rodeada de outras pessoas. Como os bebés que começam a nadar ao entrarem na água, uma reacção primal que a racionalização do mundo nos parece retirar à medida que o tempo passa.
Valérie Massadian encontrou uma menina – Kelyna Lecomte – para fazer tudo isso com uma abstracção do mundo que a rodeia que nos faz interrogar se ainda é ficção o que vemos.
O público é animado por uma ternura tão sincera por Nana, sempre relatando para si mesma o que faz e tão capaz de fazer tudo o que apenas viu aos outros, que se volta a esquecer do choque que é uma criança abandonada à sua sorte. E do choque maior que é esta criança conseguir viver – e não, meramente, sobreviver – sem mais ninguém.
A ternura funciona, pois, como elemento emocional da observação pura daqueles quadros (magnificamente captados por Valérie Massadian) onde a figura humana parece prestes a ser engolida pela natureza que a rodeia para terminar enchendo o quadro para lá da ideia de pequeno ser indefeso que se poderia esperar.
A superação humana não é uma história nova para o cinema, mas neste caso parece-o porque Valérie Massadian abdicou de justificações e contextos para mostrar como a realidade exterior é assimilada tão rápida e intensamente pela disponibilidade da mente de uma criança.


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