sábado, 2 de junho de 2012

Melancolia, por Carlos Antunes


Título original: Melancholia
Realização: Lars von Trier
Argumento: Lars von Trier
Editora: Clap Filmes

Não volta a haver em Melancolia um momento tão eloquente como os cinco minutos do prólogo onde todo o filme se resume com beleza e exactidão.
Esses cinco minutos tornam o resto do filme redundante. Não fosse por as mesmas história e metáfora estarem já e melhor narradas, seria porque a revelação do destino final das personagens - e da Terra - nos torna indiferentes ao seu percurso.
Começa-se por um casamento onde ninguém mediu a sua desproporção perante a realidade e durante o qual a noiva parece incapaz de evitar dar-se ao luxo de minar a felicidade que os outros esperam ver nela.
Justine desaparece por longos períodos, refugia-se num longo banho, faz sexo com um dos convidados que mal conhece e emborca álcool como combustível para continuar a representar o papel de noiva.
À sua volta acumulam-se as figuras típicas que - assim Lars von Trier nos quer fazer crer - tornam a vida de alguns tão horrífica por estarem rodeados da norma humana de bons e maus.
As personagens são as representações da visão que Justine - e Lars von Trier que, sejamos honestos, escreveu uma metáfora sobre si mesmo - tem dos peões do Mundo. Uma visão limitada, tornada preconceito, de quem não sabe olhar para si mesmo.
Vale a pena enumerar as personagens e as suas características para vermos como nenhuma tem um traço redentor aos olhos da noiva. O seu pai é um homem feliz e despreocupado mas que pouco investe no amor às filhas. A mãe é uma cabra amarga que só aceita que os outros sejam tal e qual ela. A irmã é controladora, pensando que pode salvar Justine da sua tristeza apenas pela demonstração do seu próprio auto-domínio. O cunhado obteve enorme sucesso mas apenas sabe agora ver a vida pela medida do dinheiro que a ela atira. O chefe é um homem que reconhece o talento mas que o explora ao ponto de perder a noção dos sentimentos humanos. O marido é um homem demasiado bom que, ao aceitá-la, não lhe consegue impôr uma vida que contrarie aquela que ele se vê obrigada a levar.
Todas as figuras são culpadas de minarem o terreno por onde Justine poderia fugir à sua melancolia, mas todas elas não são mais do que versões do individualismo errático de Justine que de nada as pode acusar excepto de não a colocarem a ela à frente de si mesmos - o que eles a poderiam acusar a ela.
O casamento tem intenções que não vão além do de montar um mundo que não compreende Justine. Um mundo em que ela é uma espécie de pária por não aceitar as desculpas que os outros têm para viverem confortáveis, seja em boa ou má disposição.
Essas intenções são importantes para fazerem a oposição à segunda metade do filme, uma metade que pouco parece ter a ver com esta primeira e que é a mais substancial (a haver uma).
No momento em que se percebe que aquilo que Lars von Trier conseguiria explicitar em não mais do que duas ou três cenas, durou uma hora num estilo de câmara à mão em busca de uma energia naturalista que nunca surgiu, está-se completamente separado do filme rodando sobre a ideia de que não houve sentido em ver tudo aquilo se estas personagens vão estar mortas dentro de mais uma hora, quando finalmente o planeta Melancolia se aproxima da Terra.
Entrando na segunda metade do filme, este inverte o papel das personagens - as poucas que recuperou do ensemble anterior - por inverter o estado do mundo. Do conforto passou-se à catástrofe e, com isso, os que julgavam ter o controlo de si mesmos não conseguem dominar o medo e Justine torna-se na arauta da aceitação. Ela engolfa-se no fim do mundo com serenidade. Afinal, quem prevê sempre o pior, acabará por nele acertar, estando mais do que preparado para viver uma forma própria de alegria por isso.
Na mansão que albergou o enorme grupo de casamento sobram Justine e Claire, irmãs em momentos opostos da vida, senhoras da situação em momentos opostos do Tempo.
Estão isoladas num espaço inesgotável e o infinito tempo escasseia. E é, no meio desse desnorte, que Justine se revela para dominar o terror de que Claire parece incapaz de resguardar o seu próprio filho.
Se são estas personagens a viver a transformação da realidade e das personalidades, está-se obrigado a perguntar porque se teve de olhar para as outras figuras ou porque teve o mundo de ser destruído se a tragédia privada as colocaria na mesma posição.
O que nos fica disto é que Lars von Trier quis alertar para a preponderância que os melancólicos como ele têm no mundo. Autores que desconfortam as almas humanas mas que são capazes de as sossegar quando o fim está à vista. Criadores até ao limite, como Justine que cria uma pequena realidade para três pessoas que ainda vai a tempo de os levar para longe do desastre.
Era escusado ter criado uma metáfora tão exagerada - um planeta gigante feito de gases, nem mais nem menos - para se justificar ou purgar a si mesmo: o cinema psicanalítico deve ser projectado nas paredes da casa de cada um.
O filme torna-se mais doloroso de assistir quando houve um momento em que filmou o carácter enigmático de Justine que a poderia ter tornado na personagem que atrai a si todos os olhares apagando a consciência para o fim do resto de um mundo que não tem interesse porque dele não faz ela parte.
Justine banha-se nua à luz da catástrofe e não se sabe se conscientemente a atrai para si ou se apenas insconscientemente se deleita nela. A cena está entre o melhor da filmografia de Lars von Trier mas morre no meio de um filme que se conta entre o seu pior.



Extras

Três curtos documentários, O Universo, Efeitos Visuais e O Estilo Visual, dão uma visão técnica do filme na sua atenção ao detalhe científico e na sua diversidade de escolhas técnicas para obter a qualidade visual do mesmo.
Um outro, Sobre o filme Melancolia, aproxima-se mais dos actores e das questões emocionais que ressoam no filme.
Mesmo assim ficam longe dos documentários mais intensos que nos habituámos a ver acompanhando o trabalho do realizador.


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