por Vicente Alves do Ó.
Simplificando a coisa. Os bons ganham sempre e os maus perdem sempre, ou quase sempre. Tem sido assim há pelo menos 2500 anos. Seja por todas as razões ou não – corpo, cérebro ou alma – a verdade é que a narrativa do mundo está cheia de histórias que são sempre a mesma história e raramente acabam doutra forma que não seja esta. Talvez porque o fim, esse fim feliz ou em projecto de felicidade, seja a última oportunidade que temos para acreditar que a morte, esse outro fim derradeiro e último, não se fica a rir de nós, que a arte estende a vida para lá da capacidade humana e circular de existir.
O século XX trouxe-nos, com o cinema, uma das abordagens mais realistas que a arte pode almejar. Porque a imagem nos permite essa aproximação, porque a imagem pode espelhar no concreto uma ideia de real, a verdade é que a realidade entrou no quotidiano dos homens como elemento de ficção e como elemento representativo da condição humana. E nessa viagem de um século, o cinema aproximou-se, afastou-se e voltou a aproximar-se da realidade.
Ainda assim, mais real ou não, há sempre uma construção moral de tudo e em tudo, até mesmo na forma como a história existe, é pensada, filmada ou ilustrada. (Todas estas designações são complementares mas podem divergir). Ainda assim, existem princípios seculares que volta e meia estão presentes nesse cinema e nessa ficção tão próxima do real. E volta e meia o mal é vencido, a justiça reposta e os bons saem vitoriosos.
O cinema sempre foi a câmara ardente do espírito e da emoção. Ver para crer. Ver para sentir. Ver para perceber. Em todas as vertentes há uma salvação que se procura para lá do mundo real, o mundo fora da sala, onde a vida de todos os dias não conhece moral, ou fim ou mesmo personagens. A vida lá fora é uma espécie de roleta que nunca pára, onde ninguém se destaca e onde o fado ( palavra tão bela e tão portuguesa) não recompensa ninguém. Mas no cinema, essa mesma roleta está viciada e tudo é causa e efeito na mão segura de alguém – o criador.
E se é verdade que expurgamos os pecados e os desejos mais íntimos na sala escura, como que acalmando o medo e a loucura da vida, também é verdade que a sala nos deixa cientes duma religião que raramente dá provas de funcionar. Se o cinema nos assegura que o bem triunfa, para que serve então a denúncia, o realismo e a suposta verdade que hoje em dia tanto se apregoa? Onde muda ele a nossa visão e acção? Onde está a força do que assistimos na sala e não trazemos depois para fora da sala, para a nossa vida? Como nos influenciam as ideias e os gritos de alerta? Como pode o cinema ainda fazer da parte da vida, quando os sonhos antigos e em tecnicolor já foram abandonados?
A resposta é tão difícil de alcançar, como é difícil acreditar. Talvez que seja preciso mudar completamente o paradigma de toda a narrativa construída no mundo. Talvez que os artistas ( criadores em geral) precisem de dar uma derradeira oportunidade a todo o mal que no fundo justifica a ficção.
Se, a partir de hoje, todos os filmes do mundo acabassem mal, deixassem de acalmar o medo e a loucura do homem, acabassem definitivamente com a esperança do outro; se todos os filmes do mundo mostrassem finalmente que não existe razão nenhuma para acreditar na vida e no bem. Talvez que os homens e mulheres ao saírem da sala, diante apenas da sua própria conduta e acção, decidissem que, se a verdade da vida fica então dentro da sala, talvez possamos nós e eles e todos juntos, fazer da vida o cinema com final feliz que ela merece ser.
O mal triunfa finalmente na narrativa. O bem como arma absoluta da vida.
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