Tradicionalmente além das mostras MUNDIAL e INDIE BRASIL, o Indie é conhecido por fazer uma retrospectiva de algum cineasta influente no atual panorama do cinema independente mundial. Em edições anteriores foram realizadas retrospectivas completas de cineastas como Apichatpong Weerasethakul e Béla Tarr. Essas retrospectivas são tão aguardadas quanto o próprio line-up das mostras principais, afinal de contas, em que outra ocasião poderíamos ver as mais de sete horas de duração de Sátántagó do húngaro Tarr numa sala de cinema?
Este ano a retrospectivas contempla dois realizadores bem distintos entre si. O chinês Wang Bing que entrou para a história do cinema mundial com os seus longos e contemplativos documentários sobre o declínio do modo de produção e vida na China Comunista. Já o francês Jean-Claude Brisseau sempre se destacou pelas polémicas evocadas pelos seus filmes, sempre filosofando sobre o feminino, a nudez, o sexo e a violência e por não ter pretendido encaixar-se em alguma das correntes estéticas do cinema que a sua carreira atravessou.
Nesta primeira parte abordarei o épico A Journal of Crude Oil (Caiyou riji, 2008) de Bing e seus 840 minutos de duração. A segunda parte das críticas sobre as retrospectivas será dedicada ao francês Brisseau.
A Journal of Crude Oil (2008), de Wang Bing
Este talvez seja um dos projetos mais ambiciosos do cinema contemporâneo. Originalmente Bing pretendia utilizar setenta horas de imagens capturadas sobre o dia-a-dia de um grupo de trabalhadores de uma petrolífera no deserto de Gobi (região sul da Mongólia). Mesmo após uma significativa redução, o documentário manteve as suas proporções épicas tendo uma duração de aproximadamente 840 minutos.
A proposta estética de Bing envolve uma delicada relação com o tempo, levando a outro extremo o que já vem sido visto no cinema europeu, ainda que toda generalização seja perigosa. Não se trata aqui simplesmente de planos longos e poucos cortes. Mas sim de entender que na proposta realista é justamente na montagem, na mesa de edição, nos cortes que a ilusão de realidade se desfaz. A vida é percebida em uma contínua progressão do tempo e ao contrário do cinema, não somos capazes de determinar o exato momento do começo e o fim de uma ação.
Este é o primeiro fetiche ou sintoma do cinema de Bing: querer prolongar o efeito enganoso de realidade causado pela projeção das imagens no seu público. O que faz com maestria. Mergulhamos tão intensamente naquelas imagens/realidade que a passagem do tempo deixa de ser medida por Chronos, o tempo cronológico, sequencial dos gregos para o Kairos que mede a duração de uma experiência como um todo sem reduzi-la em minutos e horas.
Os homens acordam, comem, saem para o trabalho, almoçam, voltam para o trabalho, comem mais uma vez e por fim, dormem. Em A Journal of Crude Oil, ainda que acompanhemos apenas um dia na vida daqueles trabalhadores, é onde o segundo fetiche do realizador se torna mais explícito: a repetição e banalidade do cotidiano. Ainda que seja na vida daqueles homens que lidam com máquinas tão grandes e com a produção do bem natural mais cobiçado da contemporaneidade: o petróleo.
E como bom documentarista cabe ao realizador ser capaz de entender que a sua simples presença, somada ao fato do objeto de interesse perceber que estar a ser filmado é suficiente para quebrar e alterar a rotina daquelas pessoas. É aí que está a diferença do cinema de Bing para outros documentaristas: a capacidade de diminuir ou ao menos diluir a sua intervenção ao longo das horas de projeção, a ponto de torná-la quase imperceptível em alguns momentos.
Muito se questionou se o projeto resultaria em algum tipo de instalação de arte mais que um documentário. Mas tal crítica parece prender-se mais com as delimitações geográficas da sala de cinema e a dificuldade de distribuição encontrada por filmes mais longos, para definir o que é ou não cinema e seu valor artístico. Bing pouco se importa com isso e usa todo o tempo que possui a favor da sua narrativa e estética. Não é uma experiência fácil, sentar e contemplar o cotidiano, ainda mais aquele árduo cotidiano, em tempos de velocidade na transmissão de informação. Mas porque a nossa experiência de observador deveria ser fácil, se a do observado não é? Por algumas horas, os olhos de Bing são os nossos. Contemplamos e é só isso que podemos fazer. Assim como o realizador durante a filmagem do documentário, não cabe ao público interferir.
As opiniões são de Walter Neto, cinéfilo, licenciado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade de Coimbra com ênfase em Cinema, a quem muito agradecemos pela contribuição.
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