sábado, 14 de setembro de 2013

INDIE 2013 (Belo Horizonte) - Último dia



Heli (2013), de Amat Escalante Uma estrelaUma estrelaUma estrelaUma estrela


Toda ação gera uma reação. Não uma reação qualquer, mas uma de força equivalente, proporcional. Esse preceito parece ser o fio condutor de Heli do mexicano Amat Escalant, premiado como melhor realizador este ano em Cannes. Heli, o jovem protagonista da história, trabalha para manter a casa que divide com o pai, a irmã mais nova, a esposa e o filho, a funcionar. Como reação, a sua irmã, de apenas 12 anos, não precisa trabalhar, apenas estuda e ocupa todo o seu tempo vago com o namorado. Ela teme entregar-se a ele e engravidar. Ele promete um casamento. Ela aceita. Eles precisam de dinheiro para fugir. Eles roubam e escondem cocaína na casa de Heli que descobre e deita a droga fora. Os donos da substância aparecem e alguém terá de pagar pelo prejuízo. Basicamente esta é a trama de Heli, o diferencial está na maneira como Escalant conta a sua história.

Heli (Armando Espitia) e a sua irmã (Linda González Hernández) dividem o tempo em tela. Primeiro entendemos a dinâmica distorcida do namoro de uma menina de 12 anos e um rapaz bem mais velho, que divide seu tempo entre ela e o treino para entrar numa milícia de combate às drogas. Neste momento, Heli é uma mera personagem secundária da qual pouco sabemos. Após o incidente com as drogas, os donos aparecem e Heli, a sua irmã e o seu namorado são sequestrados, dando início a segunda e mais difícil parte do filme. Aqui Heli assume seu papel de protagonista nas longas e explícitas sequências de tortura, o que talvez tenha sido a melhor decisão de Escalant. O realizador não nos apresenta a Heli na primeira parte do filme. Ele mal aparece. Não o conhecemos e pouco nos importamos com ele. Heli torna-se um de nós. Nós que vivemos em grandes e violentos centros urbanos, possíveis vítimas, independemente de nos colocarmos em situações de risco ou não.

E não há nada de bonito num ato de violência. Num mundo sem beleza,numa situação tão adversa, não há para Escalant outra maneira de filmar que não explicitando as monstruosidades das quais somos capazes. Há uma sequência, que muito lembra do trabalho de Haneke nas duas versões de Funny Games, na qual Heli é amarrado ao teto e torturado na frente de crianças que assistem a tudo, sentadas num sofá. Elas nada fazem e assim como nós, sentam-se confortavelmente e assistem àquele “espetáculo”. E assim como nos filmes de Haneke, se o propósito é elevar a experiência do público como espectador a um nível raramente visto no cinema, devemos, assim como aquelas pessoas sentadas no sofá, ver tudo. Sem corte ou filtros.

Há muito já se conheceu e entendeu o poder de sugestão do cinema. Basta pensarmos que os aliens mal aparecem no primeiro filme da série, Alien (Ridley Scott, 1979), ou em Rosemary's Baby (Roman Polanski, 1968), a criança não tem o seu rosto focado em nenhum momento da projeção. Ainda assim, o monstro do universo criado por Ridley Scott, ou o bebé do filme de Polanski estão gravados no fundo das nossas mentes após as sessões. E casos assim, em que não mostrar é uma decisão mais sábia que mostrar, não são raridades no cinema. Mas em Heli vemos o exato oposto. E aqui, isso funciona tão bem quanto o suspense funcionou nos exemplos dados. Escalant filma sem filtro, sem cortes, sem qualquer pudor a violência que pretende retratar. E o que poderia ser mais um caso de torture porn, torna-se uma resposta a um fenómeno do cinema contemporâneo: a glamourização da violência. Escalant seria a antítese ao cinema, por exemplo, de Jacques Audiard.

Vemos tudo e ainda que desviemos os olhos algumas vezes, rapidamente voltamos a olhar. Não queremos perder nada. Até quando ele resistirá? Quanta dor, mutilação e violência um corpo consegue suportar? Para respondermos às perguntas, devemos continuar a olhar. E assim fazemos. Compactuamos com o que o realizador nos mostra, por pior que seja. Assistimos a tudo. Calados. Tão calados quanto um jovem que após um discurso de um oficial do governo sobre uma campanha anti-drogas do governo mexicano, sobe ao palanque utilizado por um político e ainda que tenha um microfone em mãos, não tem nada a dizer e nada diz.


As opiniões são de Walter Neto, cinéfilo, licenciado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade de Coimbra com ênfase em Cinema, a quem muito agradecemos pela contribuição.

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