quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Festival de San Sebastián 2013: Secção Pérolas, por Diogo Figueira



De todos os restantes filmes que vi, quatro terão direito a crítica completa na edição da Nisimazine dedicada a San Sebastián (Funeral at Noon, da Kutxa – Novos Realizadores; Tanta Água e Workers, da Horizontes Latinos; Gloria, um dos melhores filmes que vi este ano, da secção Pérolas, acompanhada de uma entrevista com o realizador). Antes de deixar os três grandes destaques das Pérolas, que são igualmente três dos grandes destaques do festival, muito breves palavras sobre alguns filmes dos quais não queria deixar de falar:


 Los Ilusos (2013), de Jonás Trueba Uma estrelaUma estrelaUma estrela½


Tem vindo a fazer furor por todos os festivais independentes em que tem passado e está a ser distribuído pelo realizador, que só tem uma cópia do filme (à João Botelho). Filho de Fernando Trueba, irmão do autor de um dos mais aplaudidos filmes do festival, David Trueba, encontra o seu Antoine Doinel e vai para Madrid contar uma história a preto e branco, com câmara à mão, falando sobre cinema e amor, não como se fizesse uma homenagem à Nouvelle Vague, mas como se fizesse parte do próprio movimento (ou seja, não inova, como fez a corrente; antes, toma aquela estética como doutrina em que acabou por se tornar). Um filme que relembro com carinho e que, se for carta de amor, é-o a François Truffaut.


 Family Tour (2012), de Liliana Torres Uma estrelaUma estrela½


Liliana Torres, interpretada por Liliana Torres, vai visitar vários membros da sua família, devidamente interpretados por si próprios. Um exercício interessante para uma sala de aula, mas sem força suficiente para se tornar uma experiência meta-narrativa relevante. Sucessão de eventos demasiado pessoais e internos, consistentemente aborrecido, presenteia-nos com belos momentos (mesmo os mais conceptuais) de quinze em quinze minutos, e faz-nos descobrir uma grande actriz espanhola.



 The Face of Love (2013), de Arie Posin Uma estrelaUma estrela½


Por alguma razão, este é o ano dos dopplegängers (há ainda Enemy e The Double, de Richard Ayoade, pelo menos). Apesar de lamechas e inverosímil, somos carregados com encanto pelas interpretações de Bening e Harris.


 The Zero Theorem (2013), de Terry Gilliam Uma estrelaUma estrelaUma estrela


Gilliam foi exímio em erguer mais um script que seria infilmável, ou até visualmente inconcebível, na cabeça de gente muito talentosa, e eis que surge mais uma distopia extravagante, estranha e envolvente (apesar do protagonismo passivo, que também beneficia de uma grande prestação de Christoph Waltz e de dois actores secundários desconhecidos). A redução do existencialismo a cubos e videojogos faz parte da ironia filosófica a que o filme se propõe (não é suposto ser particularmente profundo ou revelador).




Desde que Matthew McConaughey virou a carreira ao contrário, conseguiu três papéis muito bons (Bernie, Magic Mike, The Paperboy), um papel memorável, estupidamente oposto a tudo o que alguma vez tinha feito (Killer Joe) e ainda não o vimos em Mud ou The Wolf of Wall Street (ou, mais para a frente, em Interstellar, de Nolan). A verdade é que já não esperava ser surpreendido, e vinha simplesmente ver um grande actor, como se sempre o tivesse conhecido assim. Esperava um drama psicológico sobre Ron Woodroof, em vez de um relato cronológico, histórico e descritivo dos acontecimentos. Apesar de ter voado mais baixo, além de se alongar demasiado, saí moderadamente satisfeito da sessão e aplaudi de bom gosto a prestação de McConaughey e Jared Leto.


 The Wind Rises (2013), de Hayao Miyazaki  Uma estrelaUma estrelaUma estrelaUma estrela


Bogdanovich perdeu a crença no cinema e deixou-nos saber isso a partir dos anos noventa – vai regressar em 2014, com Squirrels to the Nuts, escrito e realizado por si. David Lynch anda desaparecido do grande ecrã desde 2006 e não volta e meia ouvem-se rumores sobre novos projectos. Steven Soderbergh vai anunciando o fim da carreira à medida que consegue ser mais prolífico que Woody Allen (nos últimos treze anos, fez 24 filmes, falhando os dois filmes por ano apenas em 2001, 2003, 2005 e 2010, e com três em 2011). Quentin Tarantino já disse que quando fizer sessenta anos se vai dedicar apenas à literatura. E Miyazaki já tinha anunciado o adeus mais do que uma vez. Mas a verdade é que, no meio da historicidade que se inspira no real Jiro Horokoshi e no que era o Japão durante a II Guerra Mundial, nunca outro filme seu teve assim a moção tão pessoal de um aceno de despedida, grato e nostálgico por todos os velhos sonhos que o realizador japonês teve ao longo da vida. Há algo de inocente e, ao mesmo tempo, épico que liga toda a sua filmografia, agora que a podemos olhar, aparentemente completa, em retrospectiva: o voo. Objectos e estruturas voadores, habilidade para voar. Dá a impressão que, se não desenhasse filmes, Miyazaki desenharia aviões - o protagonista de The Wind Rises é um jovem e prodigioso engenheiro e designer de aviões que tenta criar o avião perfeito. O seu mentor, que apenas encontra em sonhos e devaneios, conta-lhe porque deixou de desenhar, e as palavras parecem ter sido levantadas do discurso que Hayao deu quando anunciou que não ia ele desenhar mais. O realizador parece aqui dividido entre dois personagens e dois tempos distintos – o que terminou e o que aí vem – como quando o viajante se despede para ir embora mas não consegue despegar-se do que deixa para trás. De certa maneira, este é o seu 8 ½


 Gravity (2013), de Alfonso Cuarón Uma estrelaUma estrelaUma estrelaUma estrela½


O primeiro plano dura mais de dez minutos: estamos a ver Cuarón. Imagino que haja uma ordenação cíclica neste tipo de coisa, mas creio que este é um filme que pode marcar a história do cinema – e nem falo em marcar um miúdo de vinte anos como eu – de forma análoga à de 2001: Space Odyssey ou Pulp Fiction. Cada vez é mais difícil fazer filmes, mas cada vez é mais fácil fazer filmes – caem as bolas aos investidores, mas ergue-se a era digital, e uma Canon, meia dúzia de amigos e uma casa com duas divisões podem dar um filme extraordinário. É, por isso, cada vez mais difícil existir um filme capaz de inovar tanto, sozinho e de uma só vez. A história de Gravity é uma clássica luta pela sobrevivência, verdadeiramente old school, recheada de tensão, risco e embates heróicos e desesperadas contra os elementos naturais. Mas ser contada de forma que só pode ser aquilo a que se chama “tecnicamente perfeito” muda o tom da discussão. É imperativo esquecer a ciência e aplicar uma boa dose de suspension of disbelief, para absorver as paisagens que John Ford filmaria no espaço; os travellings que se poderiam fazer sem acção da gravidade , como quando vemos imagens de astronautas a boiar no nada, com réstias descoordenadas de controlo sobre a sua direcção (vários astronautas pela internet fora têm registado o seu espanto quanto ao realismo do filme); o detalhe e propósito do 3D que deixaram um hater como eu absolutamente prostrado; uma manipulação sonora arrepiante (a articulação entre orquestras de explosões e a angustia do vácuo); as sinceras homenagens ao grande clássico de Stanley Kubrick (o filme, em si, nunca tenta debruçar-se sobre questões filosóficas e é realmente uma história de vida ou de morte, mas socorre-se de algumas metáforas que ajudam a enfabular a história num épico hollywoodesco, coisa que a mim não desagradou nem um bocadinho).


 Prisoners (2013), de Denis Villeneuve Uma estrelaUma estrelaUma estrelaUma estrela½


Negro, visceral, violento, provocador. Aperta os pulmões, alivia, e depois esmaga-os. Já não gritava um “Não!” numa sala de cinema desde que era muito miúdo e isso obriga-me a coloca-lo na lista de thrillers como Seven ou The Silence of the Lambs. Guzikowski talhou uma história de vingança e justiça pessoal, bizarra e perturbadora ao ponto de nem Denis nem Jackman quererem estar envolvidos ao início, mas tão humana que se tornou impossível recusarem. Estamos à espera do que possa acontecer em vários momentos do filme, pela nossa familiaridade com o género, mas somos agarrados pelo colarinho e arremessados contra a parede. Os desdobramentos, da vítima em duas famílias e do protagonismo em investigação policial e coração de um pai desesperado, emprestam uma textura de comportamentos, crenças e intenções que enquanto fazem o filme arder em emoções, impulsos e mistério, alastram o fogo em implicações morais e éticas. Villeneuve e Roger Deakins, numa fotografia ora gelada, ora abafada, escura, conseguem ser dolorosamente íntimos com os personagens e assombrá-los, e assombrar-nos!, ao virar de cada esquina. Hugh Jackman sobe mais um degrau na sua carreira tardia como A-list actor e Jake Gyllenhall confirma que, com Enemy, já não é mais o Prince of Persia mas sim um grande actor no rooster de Hollywood. Todo o cast merece um aplauso de pé, mas é preciso mencionar que Paul Dano, com pouco mais do que a cara e meia dúzia de palavras, faz um papel absolutamente memorável. 



Diogo Figueira licenciou-se em Junho 2012, em Cinema, ramo de Argumento, pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Trabalhou na distribuição internacional e na campanha aos Óscares de José e Pilar e nas primeiras fases de pré-produção do próximo documentário de Miguel G. Mendes, O Sentido da Vida. Trabalha agora em projectos pessoais.

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