domingo, 6 de outubro de 2013

Festival de San Sebastián 2013: Selecção oficial, por Diogo Figueira


Na Selecção Oficial, tive o azar de falhar todos os principais premiados, à excepção – ao menos isso – do grande vencedor da Concha de Ouro (é uma praia acolhedora e curvada em forma de concha que dá símbolo ao festival e título ao troféu), Pelo malo, de Mariana Rondón (argumento/realização) e Marité Ugas (produção/edição). Com muita curiosidade e por incompatibilidades de horário, o que mais lamento ter deixado para trás foi Quai d’Orsay. Comédia política francesa que valeu o Melhor Argumento a Christophe Blain e Abel Lanzac (foi speechwriter do ex-Primeiro-Ministro francês Dominique de Villepin, ainda enquanto era Ministro dos Assuntos Externos), realizado por Bertrand Tavernier (vencedor de um Urso de Ouro, um Urso de Prata e uma Palma de Prata, entre tantos outros), e cujos direitos para o remake em graphic novel no RU foram adquiridos pela SelfMadeHero.


 Enemy (2013), de Denis Villeneuve Uma estrelaUma estrelaUma estrelaUma estrela½


Ninguém sai indiferente de um filme destemido. Aqui, vinham eufóricos e boquiabertos; cheios de cinema, mas incapazes de articular uma opinião que não fosse gaguejo. A adaptação d’O Homem em Duplicado estava, como Blindness em 2008, nas mãos de um cineasta talentoso, mas trazer Saramago (a quem, na conferência de imprensa, chamavam “The Maestro”) para o grande ecrã estará próximo de trazer Kafka: a incisão do realismo mágico; o coração dos personagens na substância das metáforas negras, melancólicas, sardónicas; a inversão de pequenos papeis na natureza das coisas. O argumento é confinado a poucas paredes e muitos poucos personagens – Jake Gyllenhall, impressionante, representa dois personagens que se distinguem nos detalhes e não requerem versões extremadas um do outro, mesclando-se e confundindo-se por propósitos narrativos de terror, à medida que nos aproximamos cada vez mais do sinistro. Sarah Gadon e Mélanie Laurent, absorventes, deveriam ser tão diferentes que não nos devíamos baralhar pelos idênticos cabelos loiros, mas dentro deste pesadelo, já não sabemos o que é e o que parece. É uma peça quente, claustrofóbica e misteriosa, mergulhada num líquido cor-de-âmbar que conduz alta tensão psicológica e erótica, num jogo de identidade, prazer e morte. O final - especialmente os últimos cinco-dez segundos - ainda hoje me atormenta e por causa dele ainda não montei o puzzle por completo.




A sinopse oficial da adaptação é meticulosa, divertida e suficientemente fora da caixa para percebermos que vamos ver um Jeunet. Mas o que há de tão peculiar na estreia literária do jovem Rief Larsen, aquilo que leva Stephen King a descrever o livro como combinação impossível de Mark Twain, Thomas Pynchon e o filme Little Miss Sunshine, é muito mais do que a narrativa; é a forma como é apresentada. É o aumento das margens das páginas de forma a incluir cartografias, desenhos e apontamentos, tudo alegadamente feito pelo próprio T. S. , fluxos de consciência que, em vez de discursivos, fazem a ponte entre o conto para crianças e técnicas pós-modernistas. Jeunet não foi capaz de traduzir a janela de interpretação do mundo que o livro cria, e limita-se a recorrer ao 3D desnecessário e a construir um plot e diálogos que poderão resultar num público mais jovem, mas que me ficou a saber a Wes Anderson algo retalhado. Não deixa de ter óptimos momentos e fica a menção para o miúdo Kyle Catlett.




Um road movie ligeiro, passado nos anos 60, sobre coisas acerca das quais os The Beatles cantavam. O extraordinário Javier Cámara é professor de inglês que ensina crianças a partir das letras das músicas da banda de inglesa e que, ao descobrir que John Lennon, o seu grande ídolo, está a filmar em Almeria, decide ir conhecê-lo. A música escolhida para nos acompanhar ao longo dos vários check-points narrativos e arcos de personagens é Help. “HELP! HELP!” grita o professor, mentor da liberdade e da esperança, entusiasmado com as possibilidades que a vida tem, mesmo debaixo de uma Espanha franquista. O filme começa com três chapadas na cara em três momentos diferentes, que estabelecem o ambiente opressivo, mas foi curiosa a dissolução que sofreram na minha mente ao longo das duas horas, como se, a cada momento de bom humor e atitude positiva, lhes respondessem as vítimas de volta. Recheada de inside jokes para os espanhóis, coleccionador de gargalhadas internacionais durante toda a sessão, cuidadosamente filmado e alcançando uma envolvente fotografia de época, apenas fica a saber a pouco o facto de só o protagonista ter tido direito a desenvolvimento completo. 




O filme que, pelos posters espalhados pela cidade e pelo buzz considerável que foi criando, prometia muitas feridas abertas em corpos esbeltos, frio e psicologia visceral. Os lençóis de neve branca sobre as montanhas escarpadas formaram uma fotografia de apertar o fôlego – mas foi apenas isso. Mesmo quando estávamos misteriosamente bem enquadrados dentro de casa, o filme era demasiado lento para um thriller de terror e demasiado superficial para um thriller psicológico. A tensão vai-se esvaindo em largos minutos de tempos mortos onde se busca uma profundidade fantasma e, em momentos decisivos como revelações ou fatalidades, os diálogos são excessivamente teatrais (afastando ainda mais o espectador). As acções dos personagens não têm carga emocional para eles, quanto mais para nós. Virtuosismo técnico de aplaudir (venceu Melhor Fotografia, embora valha a pena mencionar a sonoplastia).


 Pelo Malo (2013), de Mariana Rondón Uma estrelaUma estrelaUma estrelaUma estrela½


Um bairro social em Caracas filmado do ponto de vista de uma criança é-nos apresentado como uma versão latina, sobrelotada e degradada das janelas que espiamos na companhia de Jimmy Stewart, em Rear Window. Cada família, cada rotina, e Junior e a sua amiga especulam sobre aquelas vidas, da mesma forma com que brincam, inocentemente, à guerra e às violações, com soldados e bonecas. Junior quer apenas alisar o seu cabelo teimoso e encaracolado para poder ser uma estrela de música, e tudo isto a tempo de tirar a foto do início do ano lectivo; quer apenas viver com o entusiasmo que lhe é natural, e sentir todas as coisas novas que está a sentir. Mas este é um filme que se ramifica em complexas relações familiares, em que crescimento, liberdade e definição sexual formam um retrato que quanto mais íntimo fica (camadas atrás de camadas), mais nos dilacera: uma mãe carente mas guerreira, cumpridora mas amarga, incapaz de aceitar o contacto físico com o filho, guiando-o com a mesma intolerância com que o país pretende guiá-los; uma avó de comportamento bizarro que, por solidão, ego e poder tenta tomar posse do neto (literalmente) e interferir directamente na sua sexualidade. A metáfora política é subtil e, da maior parte das vezes, não-intencional, e atinge-nos como uma bola de espinhos pela honestidade de quem são e do que fazem todos estes personagens, ao abrigo de um projecto social falhado enquanto procuram direcções para como viver agora. Fiquemos atentos, nos Óscares de 2015, à categoria de Melhor Filme Estrangeiro.



Diogo Figueira licenciou-se em Junho 2012, em Cinema, ramo de Argumento, pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Trabalhou na distribuição internacional e na campanha aos Óscares de José e Pilar e nas primeiras fases de pré-produção do próximo documentário de Miguel G. Mendes, O Sentido da Vida. Trabalha agora em projectos pessoais.

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