Título original: Mudbound
Realização: Dee Rees
Argumento: Virgil Williams, Dee Rees
Elenco: Carey Mulligan, Garrett Hedlund, Jason Clarke, Mary J. Blige
A necessidade de expressar os paralelos e as contradições entre famílias brancas e negras da classe mais pobre na América interior continua a ser premente neste início do século XXI, como a situação política bem demonstra.
Entende-se a aspiração a abordar os anos 1930 e 40 na forma de um épico que ressoe na consciência da actualidade.
Um épico que atravessa a Grande Depressão e a II Guerra Mundial apontado a um sentido de intimidade que possa tocar o público.
Daí o foco na amizade entre dois heróis de guerra tratados de forma oposta no seu regresso a casa. Amizade que contradiz o histórico entre as suas duas famílias e as regras sociais do Mississípi.
O traçado de um drama antigo e que continuará, será inevitável, a ser comum. Aqui focado em dois homens que ajudam a trazer para diante dois grandes temas, o stresse pós-traumático e o racismo - sobretudo este!
Ousar um discurso sobre tais temas por via de um microcosmos assim estreitado traz um perigo, resvalar para o melodrama restrito daqueles personagens.
A ele sucumbe o filme, um longo melodrama pincelado pelos acontecimentos que lhe dão um Tempo, sem o imergir na sua representação.
Sente-se que, em parte, o problema vem da vontade de falar do Presente por via do Passado e, assim, não poder Dee Rees arriscar que uma recriação intensa daquele mundo se sobreponha ao entendimento da sua palestra.
Culpa maior vem da construção dos personagens, todos eles transformados em marcos para dar forma ao melodrama e para marcar o fundo cultural da história.
O soldado negro regressado que perde a dignidade e o reconhecimento que vivera na Europa. O soldado regressado que se embebeda para esquecer os horrores da morte e é olhado como um fraco. A mulher inteligente reduzida a ser apêndice da vontade do marido. O homem determinado que faz face às dificuldades pela casmurrice e a força de braços. O velho racista que nem perante a evidência da sua pobreza perde a sua arrogância. O pai negro que acredita em resgatar a família àquela sociedade por via da obediência e do trabalho.
Serão identidades verdadeiras e abundantes daqueles anos, mas são lugares-comuns da ficção. Sobretudo se não lhes são dadas cenas onde as suas linhas definidoras possam mostrar as suas matizes ou os seus extremos.
Os actores estão no filme sem que alguma exigência lhes seja feita. Por isso se nota que, mesmo havendo quem sinta os temas, nada consegue entregar ao filme.
Dee Rees trata-os como trata os cenários, elementos de sinalização sem uma identidade a contribuir para a construção da obra. Mesmo as lamas não metafóricas do título são raras e pouco convincentes como símbolo da captura que todas as personagens sentem naquele estado americano.
Aquilo em que tudo se afunda é a narração omnipresente com que a realizadora tenta dar gravitas ao filme e que trai as suas origens livrescas. A nomeação ao Oscar de Melhor Argumento Adaptado é pouco menos que um absurdo.
Aquelas décadas continuam a ter ensinamentos a prestar à população americana - "branca" - para que, hoje, deixe de reforçar um século de conflitos nascidos de uma desigualdade que nunca parece ter existido.
Não será, decerto, este filme a conseguir fazê-lo, incapaz de se elevar da lama formada pela combinação da historieta central com a transversal negação de uma identidade aos nela envolvidos.
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