sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Doutor Sono, por Eduardo Antunes


Título original: Doctor Sleep (2019)
Realização: Mike Flanagan
Argumento: Mike Flanagan

"Atreve-te a voltar atrás", diz a tagline do filme. Não só se preocupou Stephen King em o fazer, na escrita do romance homónimo a este filme e sua inspiração, como Flanagan se atreveu a revisitar o que agora é considerado um clássico do cinema (em particularmente, de terror). Resta entender se houve recompensa para o esforço tomado.

O que levou King a não apreciar a adaptação da sua obra originária The Shining foi precisamente o desvio que a mesma tomara relativamente a diversos elementos presentes no livro os quais (não o tendo lindo) certamente incluirão diversas deambulações sobre os elementos mais fantásticos.
Nesse seguimento, será óbvia a satisfação do autor com esta adaptação, que certamente se aproxima mais da sua obra, servindo maioritariamente, à semelhança de outras adaptações de obras suas, os elementos do paranormal e afins, mergulhando profundamente em explicações que não deixam qualquer espaço ao mistério.

E como sequela, apenas o é mais precisamente na personagem de McGregor, representando a criança de The Shining, mas que não representa ele próprio verdadeiramente o protagonista. Isso poderia ter servido um desvio propositado do original, numa narrativa totalmente distinta, tentando construir o seu próprio carácter, que de forma geral tenta fazer, ainda que assemelhando-se demasiado a tantos outros filmes no mesmo género. Ainda para mais, no acompanhamento de um grupo de humanos quase imortais que se alimentam do poder que povoa pessoas como Danny, até encontrarem uma adversária única a qual parecem não estar preparados para enfrentar, não existe nada de particular destaque - para além de uma inebriante interpretação de Rebecca Ferguson que nos vais fixando ao ecrã até ao seu momento inevitavelmente fatídico, e de uma estreante Kyliegh Curran como verdadeira protagonista.

Stanley Kubrick criou iconografia única, até agora parodiada e copiada, enquanto aqui reconhecemos os mesmos efeitos de tantos outros filmes. Nem mesmo a sequência que mais atenção poderia ter levado, num primeiro confronto climático entre Abra (Curran) e Rosie (Ferguson), recebe a merecida formalização. A personagem de Ferguson refere-nos a catedral das suas memórias, mas aparte uns meros segundos, não é aproveitada a imagética da qual se poderia ter tirado tanto proveito para realçar uma sequência narrativa tão reveladora e com um potencial iconográfico tão forte quanto o labirinto de The Shining.










E enquanto Kubrick mostrava um lugar acolhedor na apresentação do cenário que, apenas sob o olhar prolongado da câmara sobre os seus protagonistas recebia a atmosfera extenuante, isoladora contrastante com essa apresentação, Flanagan utiliza a mesma técnica de cores desnaturadas utilizada em tantos outros filmes, não apenas de terror, forçando em quase todo o filme uma atmosfera muito específica e contemporânea - felizmente sem utilização de sustos óbvios.

Novamente, caso servisse o seu próprio propósito e se destacasse inteiramente, qualquer comparação com o filme de Kubrick seria desnecessária, como parece inicialmente pretender. É, no entanto, naquilo que constitui o acto final do filme que entendemos que o realizador está mais interessado e preocupado em revisitar e recriar literalmente cenas do filme originário, aproveitando um reconhecido cenário, inexistente no romance de 2013. Mesmo que servindo o fascinante (e necessário) propósito de revisitar o trauma dos eventos passados no Hotel Overlook sobre Danny, ainda mais isoladas se sentem as poucas cenas que o experimentam por entre a restante narrativa que pouco proveito à partida retira desta personagem. Se a escolha de Ewan McGregor nos diz alguma coisa é que à personagem não era oferecida atenção suficiente, sendo necessária a presença de um nome sonante para a realçar.

E no final, nem esse revisitar serve uma sequência aprofundada sobre o "combate" de Abra e Danny contra Rosie. No início, se Flanagan aproveita o imaginário possível com o labirinto, não aproveita isso para realçar simbolicamente quaisquer receios que pudessem existir em Rosie. Em alguém que roça a imortalidade, de tantas vidas vividas quais são os fantasmas, sacrifícios, os pesadelos  que a assolam? Mesmo que não sinta qualquer compaixão pelas suas vítimas, ainda que a vingança possa servir as suas perdas, será a morte o seu receio único?
E quando Dan nos informa anteriormente de como a sua mãe morreu, e da sua inabilidade de a conseguir olhar, poderia a falta de uma última memória da mãe ser o fantasma, o terror que Rosie utilizaria contra ele, mas o realizador sentiu preferência, ao invés, em utilizar extenuantemente a mesma imagem da residente do quarto 237 durante todo o filme, retirando-lhe assim o possível impacto.

O paradigma do terror cinematográfico mudou, e talvez já não haja um espaço para filmes como The Shining, numa maré tão vasta de criação onde dificilmente se cria algo original. O que aqui fere particularmente esta tentativa é o facto de conscientemente escolher se agarrar tanto ao filme de 1980 equanto homenagem e base para diversas cenas, sem tentar criar a sua própria imagética, apesar das dicas que oferece, pelo meio de uma narrativa já algo generalizada e desinspirada.



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