quinta-feira, 23 de junho de 2011

Valhalla Rising - Destino de Sangue, por Carlos Antunes


Título original: Valhalla Rising

A contemplação da religião - entendida no seu sentido original, da ligação do terreno ao divino - pode ter a sua origem na brutalidade da violência enlameada.
Isto é a tese de Valhalla Rising e não há dúvida de que o filme a demonstra eficazmente.
Não se trata somente de contemplar a beleza da terra e do céu enquanto os homens se arrastam na lama e se salpicam do sangue alheio.
Trata-se de encarar a natureza primal do homem pela sua dúvida perante a crença. Ou a dissonância do instinto físico com a expectativa mental.
É necessário estar preparado para enfrentar os momentos de violência visceral - mais ferozes pela montagem de som que não perdoa nenhum detalhe realista - para contemplar a espiritualidade do mais barbárico dos homens.
Convém lembrar que Valhalla é um dos locais que acolhe os mortos em combate. Um cenário divino ao qual se aspira, como o paraíso dos cristãos com quem One Eye (Mads Mikkelsen) se cruzará, mas para o qual não se chega pelo martírio ou pela bondade.
O problema é que este guerreiro é demasiado eficaz e há muitos anos que combate saindo sempre vitorioso. Alcançar Valhalla parece ser impossível para ele e é por isso que ele aceita, também, percorrer o caminho para a reconquista de Jerusalém que promete a salvação da alma e, espera, a sua entrega aos céus.
Sinto que o filme pode ser uma experiência reveladora mesmo para quem não conheça a mitologia Nórdica, mas ajudará certamente saber que o olho em falta do protagonista poderá equivalê-lo a Odin, que sacrificou um dos seus olhos em troca da Sabedoria Eterna.
Daí se explicariam as suas visões do futuro, no entanto sempre banhadas a sangue. Sangue dos outros mas também seu.
O anúncio do seu próprio sangue derramado levará a um sacrifício final para salvação de um inocente. Uma reprodução de um significativo episódio cristão que, certamente, confunde o percurso do filme.
Pois o cruzamento, ora conflituoso ora consentâneo, da mitologia nórdica com a crença cristã eleva a questão global.
Que os elementos de várias religiões sempre foram reaproveitados e mesclados para ir produzindo outras novas não é novidade alguma, mas presenciar o movimento humano no seio de um encontro entre elas já o é.
Precisamos de estar atentos à contradição dos actos dos cristãos, que viajam para Jerusalém confiantes no seu Deus mas que crêem que uma maldição os acompanha só a podendo dissipar matando a criança que com eles segue, para perceber a dificuldade da transformação imediata e as muitas zonas cinzentas no período que tal transformação demora.
O assombro de lutar para ordenar os elementos que pertencem a cada qual e, com isso, tirar o sentido do mundo como ele foi num momento transformador como aquele é a dádiva de Nicolas Winding Refn à conta do seu inconformismo e talento.
Será possível que uma religião guerreira seja similar a outra martirizada desde que se admita abdicar do detalhe da forma como se transpõe a divisória entre o céu e a terra? Ou é imputável ao homem a transformação de um estado de crença individualizada numa outra mais caridosa para com o "próximo"? E quem é verdadeiramente homem ou deus nesta viagem, o guerreiro que se entrega como mártir ou a criança que sobrevive apesar de não ser capaz de se defender?
Muitas questões cujo conhecimento prévio das crenças envolvidas multiplicarão. E com a procura de resposta a cada uma delas, o filme não parará de crescer.
Apesar da divisão do filme em etapas (capítulos), a sua percepção não segue uma narrativa palpável de tempo e geografia.
São mais as pausas do que os eventos que regem o ritmo do filme. Pausas em que estamos a contemplar pelo olhos da magnífica fotografia os espaços sobre os quais teremos de reflectir.
Estamos a olhar para uma personagem que está no ecrã , não lado a lado mas simultaneamente disputando o primeiro plano.
Estamos a contemplar o ponto onde se tocam a terra e o céu, o ponto da religião, portanto, tal como dela falei logo no início.
Alguns dirão que estou a ser herético a fazer esta comparação, outros dispensarão de imediato com este filme à conta dela. Seja como for, a beleza e a interrogação existencial deste filme só tem um paralelo (este ano), The Tree of Life.
Dois filmes que não se limitam à percepção alheia do que deve ser o cinema e que exigem que a mente batalhe por eles tanto quanto os sentidos se rendem a eles. Bravo!



 

1 comentário:

  1. ainda nao a muito tempo li uma noticia em que mencionaram este filme e fiquei curioso mas depois de ler esta critica vou ter de o ver mesmo e rapidamente.

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