terça-feira, 16 de julho de 2013

A Parte pelo Todo: a família brasileira entra em cena


O cinema brasileiro sempre foi estigmatizado pelo excesso dos chamados “filmes-favela”. Um estigma injusto, pois nada mais natural que um veículo de massa como este se preocupe em retratar questões tão impactantes na estrutura de uma sociedade, neste caso a brasileira. Mas tal estrutura tem mudado com o surgimento de uma nova e mais abrangente classe média e tais mudanças se refletiriam, em algum momento, também na produção cultural do país. Encontramos nas artes em geral um espelho para as inquietações e transformações sociais que qualquer povo possa enfrentar. No cinema brasileiro veremos esse reflexo na mudança de foco do interesse de diversos cineastas.

Um novo fetiche para muitos cineastas é a já mencionada nova classe média surgida no país ao longo dos últimos dez anos.. Do macrocosmo que é uma favela, passamos ao microcosmo de uma casa e da mesma maneira que a escritora Virginia Woolf se referia ao seu Mrs Dalloway como “um dia na vida de uma mulher e a vida de uma mulher em um dia”, temos aqui a vida de uma única família no ecrã, mas ainda assim, a vida de todo um país retratada. A parte pelo todo.

A Casa de Alice (Chico Teixeira, 2007) é um belo exemplo de tal análise. Nele acompanhamos alguns dias na vida de Alice (Carla Ribas) e sua família que se aperta para caber em um apartamento minúsculo na grande São Paulo. E assim como muitos dos problemas sociais dos grandes centros urbanos começam a invadir o interior, seja a violência ou um crescimento demográfico descontrolado, por não caberem mais nas grandes cidades; os problemas de Alice e sua família não cabem mais naquele pequeno apartamento. Se é que algum dia já coube. O perigo de tal situação é simples: menor o espaço, maior a pressão e com isso, o risco de tudo ir pelos ares se torna mais real. Esse problema é retratado com mestria pelo realizador ao escolher utilizar quase que totalmente de close-ups e planos detalhes, sempre comprimindo seus atores em um espaço mínimo para a ação no ecrã. Tal excesso de proximidade geral uma hostilidade entre os membros da família: Uma mulher insatisfeita com seu casamento e o rumo que sua vida tomou, um marido que pouco contribui para o sustento da família e busca espaço ficando o dia todo fora em bares, uma avó que se tornou um peso para a família e três irmãos que são irmãos apenas por laços sanguíneos. Não há afeto fraterno entre eles, mas essa ausência foi suprimida pelo desejo sentido por dois desses irmãos, o caçula Júnior (Felipe Massuia) e Lucas (Vinicius Zinn). Raiva, desejo, sexo, algumas pequenas alegrias, muitas decepções, tudo confinado em um espaço minúsculo, tudo retratado de uma forma crua, sem muita privacidade para a as personagens, com uma câmera bem objetiva ou porque não fetichista.



Outro drama familiar é o belo Linha de Passe (Walter Salles e Daniela Thomas, 2008). Que utiliza de uma abordagem diferente do A Casa de Alice para focar nos problemas da família em questão. Enquanto o anterior foca nos ambientes internos, Salles e Thomas optam por buscar os conflitos externos a casa vivido por cada uma das personagens para só então, entendermos como a vida fora afeta a vida dentro da casa. Cleuza (Sandra Corveloni), que merecidamente foi premiada com a palma de ouro de melhor interpretação feminina em Cannes, é uma mãe de quatro filhos, todos sem uma figura paterna presente, que grávida do quinto filho se divide entre cuidar de sua casa e da casa dos outros como doméstica. Tudo começa a piorar quando sua patroa questiona se não seria hora de Cleuza ficar em casa devido a avançada gestação. Dario (Vinícius de Oliveira), retomando dez anos depois de Central do Brasil sua parceria com Salles, é um jovem aspirante jogador de futebol que se vê diante de sua última oportunidade de entrar para um time, pois já completou dezoito anos e os times não selecionam jovens acima dessa idade. Dinho (José Rodrigues) largou as drogas e o crime, convertendo-se a igreja evangélica, mas se vê perseguido por seu passado. Reginaldo (Kaique Jesus dos Santos) quer descobrir quem é seu pai e não se sente parte da família por ser o único negro. Por fim, Dênis (João Baldasserini) um motoboy que não conseguindo sustentar seu filho, começa a praticar furtos pela cidade. Cada um deles vivendo um mundo próprio, mas todos trazendo as consequências disso para dentro de casa. Seja em uma bolsa roubada dada de presente para a mãe, seja na recusa de voltar para casa e a aflição de quem espera por notícias. Este que para mim é o melhor de Salles após Central do Brasil, é um belo retrato de como por mais que tentemos nossas vidas privadas e publicas não andam mais separadas como costumavam.

Por Walter Neto, cinéfilo, licenciado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade de Coimbra com ênfase em Cinema

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