Na Selecção Oficial, tive o azar de falhar todos os principais premiados, à excepção – ao menos isso – do grande vencedor da Concha de Ouro (é uma praia acolhedora e curvada em forma de concha que dá símbolo ao festival e título ao troféu), Pelo malo, de Mariana Rondón (argumento/realização) e Marité Ugas (produção/edição). Com muita curiosidade e por incompatibilidades de horário, o que mais lamento ter deixado para trás foi Quai d’Orsay. Comédia política francesa que valeu o Melhor Argumento a Christophe Blain e Abel Lanzac (foi speechwriter do ex-Primeiro-Ministro francês Dominique de Villepin, ainda enquanto era Ministro dos Assuntos Externos), realizado por Bertrand Tavernier (vencedor de um Urso de Ouro, um Urso de Prata e uma Palma de Prata, entre tantos outros), e cujos direitos para o remake em graphic novel no RU foram adquiridos pela SelfMadeHero.
Ninguém sai indiferente de um filme destemido. Aqui, vinham eufóricos e boquiabertos; cheios de cinema, mas incapazes de articular uma opinião que não fosse gaguejo. A adaptação d’O Homem em Duplicado estava, como Blindness em 2008, nas mãos de um cineasta talentoso, mas trazer Saramago (a quem, na conferência de imprensa, chamavam “The Maestro”) para o grande ecrã estará próximo de trazer Kafka: a incisão do realismo mágico; o coração dos personagens na substância das metáforas negras, melancólicas, sardónicas; a inversão de pequenos papeis na natureza das coisas. O argumento é confinado a poucas paredes e muitos poucos personagens – Jake Gyllenhall, impressionante, representa dois personagens que se distinguem nos detalhes e não requerem versões extremadas um do outro, mesclando-se e confundindo-se por propósitos narrativos de terror, à medida que nos aproximamos cada vez mais do sinistro. Sarah Gadon e Mélanie Laurent, absorventes, deveriam ser tão diferentes que não nos devíamos baralhar pelos idênticos cabelos loiros, mas dentro deste pesadelo, já não sabemos o que é e o que parece. É uma peça quente, claustrofóbica e misteriosa, mergulhada num líquido cor-de-âmbar que conduz alta tensão psicológica e erótica, num jogo de identidade, prazer e morte. O final - especialmente os últimos cinco-dez segundos - ainda hoje me atormenta e por causa dele ainda não montei o puzzle por completo.
A sinopse oficial da adaptação é meticulosa, divertida e suficientemente fora da caixa para percebermos que vamos ver um Jeunet. Mas o que há de tão peculiar na estreia literária do jovem Rief Larsen, aquilo que leva Stephen King a descrever o livro como combinação impossível de Mark Twain, Thomas Pynchon e o filme Little Miss Sunshine, é muito mais do que a narrativa; é a forma como é apresentada. É o aumento das margens das páginas de forma a incluir cartografias, desenhos e apontamentos, tudo alegadamente feito pelo próprio T. S. , fluxos de consciência que, em vez de discursivos, fazem a ponte entre o conto para crianças e técnicas pós-modernistas. Jeunet não foi capaz de traduzir a janela de interpretação do mundo que o livro cria, e limita-se a recorrer ao 3D desnecessário e a construir um plot e diálogos que poderão resultar num público mais jovem, mas que me ficou a saber a Wes Anderson algo retalhado. Não deixa de ter óptimos momentos e fica a menção para o miúdo Kyle Catlett.
Vivir es fácil con los ojos cerrados (2013), de David Trueba
Um road movie ligeiro, passado nos anos 60, sobre coisas acerca das quais os The Beatles cantavam. O extraordinário Javier Cámara é professor de inglês que ensina crianças a partir das letras das músicas da banda de inglesa e que, ao descobrir que John Lennon, o seu grande ídolo, está a filmar em Almeria, decide ir conhecê-lo. A música escolhida para nos acompanhar ao longo dos vários check-points narrativos e arcos de personagens é Help. “HELP! HELP!” grita o professor, mentor da liberdade e da esperança, entusiasmado com as possibilidades que a vida tem, mesmo debaixo de uma Espanha franquista. O filme começa com três chapadas na cara em três momentos diferentes, que estabelecem o ambiente opressivo, mas foi curiosa a dissolução que sofreram na minha mente ao longo das duas horas, como se, a cada momento de bom humor e atitude positiva, lhes respondessem as vítimas de volta. Recheada de inside jokes para os espanhóis, coleccionador de gargalhadas internacionais durante toda a sessão, cuidadosamente filmado e alcançando uma envolvente fotografia de época, apenas fica a saber a pouco o facto de só o protagonista ter tido direito a desenvolvimento completo.
O filme que, pelos posters espalhados pela cidade e pelo buzz considerável que foi criando, prometia muitas feridas abertas em corpos esbeltos, frio e psicologia visceral. Os lençóis de neve branca sobre as montanhas escarpadas formaram uma fotografia de apertar o fôlego – mas foi apenas isso. Mesmo quando estávamos misteriosamente bem enquadrados dentro de casa, o filme era demasiado lento para um thriller de terror e demasiado superficial para um thriller psicológico. A tensão vai-se esvaindo em largos minutos de tempos mortos onde se busca uma profundidade fantasma e, em momentos decisivos como revelações ou fatalidades, os diálogos são excessivamente teatrais (afastando ainda mais o espectador). As acções dos personagens não têm carga emocional para eles, quanto mais para nós. Virtuosismo técnico de aplaudir (venceu Melhor Fotografia, embora valha a pena mencionar a sonoplastia).
Um bairro social em Caracas filmado do ponto de vista de uma criança é-nos apresentado como uma versão latina, sobrelotada e degradada das janelas que espiamos na companhia de Jimmy Stewart, em Rear Window. Cada família, cada rotina, e Junior e a sua amiga especulam sobre aquelas vidas, da mesma forma com que brincam, inocentemente, à guerra e às violações, com soldados e bonecas. Junior quer apenas alisar o seu cabelo teimoso e encaracolado para poder ser uma estrela de música, e tudo isto a tempo de tirar a foto do início do ano lectivo; quer apenas viver com o entusiasmo que lhe é natural, e sentir todas as coisas novas que está a sentir. Mas este é um filme que se ramifica em complexas relações familiares, em que crescimento, liberdade e definição sexual formam um retrato que quanto mais íntimo fica (camadas atrás de camadas), mais nos dilacera: uma mãe carente mas guerreira, cumpridora mas amarga, incapaz de aceitar o contacto físico com o filho, guiando-o com a mesma intolerância com que o país pretende guiá-los; uma avó de comportamento bizarro que, por solidão, ego e poder tenta tomar posse do neto (literalmente) e interferir directamente na sua sexualidade. A metáfora política é subtil e, da maior parte das vezes, não-intencional, e atinge-nos como uma bola de espinhos pela honestidade de quem são e do que fazem todos estes personagens, ao abrigo de um projecto social falhado enquanto procuram direcções para como viver agora. Fiquemos atentos, nos Óscares de 2015, à categoria de Melhor Filme Estrangeiro.
Diogo Figueira licenciou-se em Junho 2012, em Cinema, ramo de Argumento, pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Trabalhou na distribuição internacional e na campanha aos Óscares de José e Pilar e nas primeiras fases de pré-produção do próximo documentário de Miguel G. Mendes, O Sentido da Vida. Trabalha agora em projectos pessoais.
Diogo Figueira licenciou-se em Junho 2012, em Cinema, ramo de Argumento, pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Trabalhou na distribuição internacional e na campanha aos Óscares de José e Pilar e nas primeiras fases de pré-produção do próximo documentário de Miguel G. Mendes, O Sentido da Vida. Trabalha agora em projectos pessoais.
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