quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Canino, por Tiago Ramos



Título original: Kynodontas (2009)
Realização: Giorgos Lanthimos
Argumento: Giorgos Lanthimos e Efthymis Filippou

Este exemplo de cinema grego que se nos apresenta esta semana, pelas mãos de Giorgos Lanthimos, é recheado de referências e influências. Não que isso lhe tire o primor conseguido, muito pelo contrário. Em Canino encontramos referências ao cinema violento e genuíno de Michael Haneke (Funny Games é um bom exemplo), a A Vila, de M. Night Shyamalan (uma sociedade repressiva excessivamente protectora) ou até uma versão de Dogville, de Lars von Trier. Vencedor do prémio Un Certain Regard no Festival de Cannes 2009 e do Grande Prémio do Estoril Film Festival 2009, o filme é provocação e sadismo puro e simples.



Canino é uma versão cinematográfica contemporânea da eterna Alegoria da Caverna, do filósofo Platão. Num país com crises gravíssimas a nível social e económico, não deixa de ser possível notar semelhanças a uma crítica ao totalitarismo. Tal como na caverna descrita pelo filósofo, onde os homens vivem presos no fundo de uma caverna e consideram como realidade aquilo que lhes é projectado na parede, tomam como reais as sombras projectadas na parede, também em Canino, aquilo que a família que nos é apresentada toma como realidade e facto, acaba por não ser bem assim.

Para o líder desta família o ser humano precisa de ser domesticado. Nem que para isso tenha que ser educado com doutrinas absurdas ou que tornar o seu pensamento mais infantil e menos proactivo. Mesmo que para isso se crie um indivíduo que naturalmente não questione o mundo à sua roda e que tome como absoluto e dogmático tudo o que existe. Os vídeos em família, qual propaganda totalitarista, as histórias reescritas à maneira pessoal, a efabulação da vida. Sem contacto com o mundo exterior, veja-se a ironia de aceitar como verdade determinadas noções comuns. Não deixa de ser irónico, mas ao mesmo tempo chocante, que um zombie seja uma pequena flor amarela ou um telefone seja um saleiro. Aqui, Giorgos Lanthimos inspira-se na teoria de Rousseau acerca do bom selvagem e do conceito de tábua rasa. Para ele o Homem, no estado natural, deseja somente aquilo que o rodeia, porque ele não pensa, sendo então desprovido da imaginação necessária para desenvolver um desejo que ele não percebe. Para ele, o Homem é bom por natureza, mas está submetido à influência corrompedora da sociedade.



A realidade é filmada aqui sem grandes artifícios, sem banda sonora, de uma forma muito cruel e dura. Canino é uma provocação surrealista sobre a corrupção e educação. Tem referências actuais, conforme as já referidas do totalitarismo, mas também ao 11 de Setembro – veja-se as cenas em que os filhos aguardam que os aviões caiam. E em nenhuma altura, o filme evolui dessa faceta provocatória, apenas continua a reafirmar a sua ideia, através de mensagens subliminares – veja-se também a cena com o treinador de cães. E daí partimos para a forma como devemos encarar esta singular obra cinematográfica: um estudo sociológico e psicológico. Uma crítica aos media e não deixa de ser irónico que o realizador utilize o cinema – através de uma cassete VHS – para representar a anarquia e o momento a partir do ponto em que a família entra em colapso e em que nos apercebemos que talvez a curiosidade seja inata.



Em Canino o espectador é uma cobaia numa experiência voyeurista sobre violência e submissão, sobre cultura e educação. E o espectador – que garanto que não conseguirá nunca reagir com indiferença – é levado a participar activamente no filme. Porque o objectivo e a questão levantada no filme é tão oportuna e tão interessante, mas também tão questionável do ponto de vista ético, que provocará discussões individuais e colectivas, que poderiam dar pano para mangas em várias áreas.

Canino é um dos objectos mais singulares que terão oportunidade de estrear este ano. Entre o bizarro e o surreal, encontramos um filme interessantíssimo, bastante semelhante a uma tese, quase a roçar o experimentalismo e que não deve com certeza ser ignorado.



Classificação:

11 comentários:

  1. Já o vi há mais de uma semana e ainda não me saiu da cabeça. Quando saí da sala saí tonto, chocado, mal-disposto e ao mesmo tempo fascinado. Tentei mais que uma vez escrever sobre o filme mas não consegui, pelo menos até agora. Vou fazer pelo menos mais uma tentativa.

    Parabéns pelo texto Tiago. Confesso que não conseguiria pôr em palavras uma opinião tão deslocada e racional. O que é um elogio. A verdade é que o filme teve um efeito tão profundo e ressonante em mim que nem sequer o consigo considerar um filme. Para mim é qualquer coisa mais. Mas não faço ideia do quê.

    Abraço.

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  2. Já o vi há mais de uma semana e ainda não me saiu da cabeça. Quando saí da sala saí tonto, chocado, mal-disposto e ao mesmo tempo fascinado. Tentei mais que uma vez escrever sobre o filme mas não consegui, pelo menos até agora. Vou fazer pelo menos mais uma tentativa.

    Parabéns pelo texto Tiago. Confesso que não conseguiria pôr em palavras uma opinião tão deslocada e racional. O que é um elogio. A verdade é que o filme teve um efeito tão profundo e ressonante em mim que nem sequer o consigo considerar um filme. Para mim é qualquer coisa mais. Mas não faço ideia do quê.

    Abraço.

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  3. O filme produz efeitos dias e dias, semanas a fio... É realmente muito forte, muito estranho e bizarro e tal como tu, divido-me entre a abominação e o fascínio. Este estava em rascunho desde a estreia do filme... e custou-me imenso a escrevê-lo por isso mesmo que mencionas.

    Obrigado e aguardo pela tua crítica. :) Abraço

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  4. Fico contente por ambos terem gostado. É que não tenho lido críticas simpáticas na língua portuguesa ao filme, por isso estava a ficar com um pé atrás... Mas hei-de o ver.

    Abraço.

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  5. E sinceramente não consigo perceber essas críticas negativas. O filme tem um objectivo: não deixar ninguém indiferente. E consegue.

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  6. Eu tenho que ver este filme... E urgentemente!!! Ainda não li a crítica mas depois passo por aqui para comentá-la...

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  7. Tens mesmo de ver este filme, Filipe! Cá espero pela tua opinião!

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  8. Vi hoje o filme...

    Antes do filme: vamos la ver o que isto vai ser...

    Durante o filme:Estupidez. Parvoíce. Riso. A melhor palavra: LOUCURA!

    Final do filme:SEMI-CHOQUE! Não foi um choque total porque era o único final possivel de forma a que a mensagem da "tese" do realizador fosse transmitida ao publico...

    1ª impressão geral: GENIAL!!!

    Para se gostar do filme é necessário entrar-se no espírito, é necessário perceber que o objectivo do realizador é só e apenas fazer uma enorme crítica absurda, surreal e paranóica ao totalitarismo... Até porque é isso mesmo que esse regime é... Um reforço permanente do ridículo!

    Ainda preciso de assentar ideias... Um filme a rever...

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  9. http://www.youtube.com/watch?v=KLOy4_tzXHY

    GENIAL!!!

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  10. Sim, essa referência a Flashdance como metáfora para a cultura externa que entrou no seio daquele família, é genial...

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  11. Eu por acaso, apesar do absurdo, nunca consegui rir. É tão surreal mesmo, tão chocante, que quase não consegui reagir, apesar do rídiculo.

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