quinta-feira, 5 de abril de 2012

The Hunger Games - Os Jogos da Fome, por Carlos Antunes


Título original: The Hunger Games
Realização: Gary Ross

Há uma espessa camada de material a discutir logo abaixo da superfície de acção juvenil de The Hunger Games. Uma espessa camada em que o filme raramente penetra. 
Começo desde logo por um conjunto de referências cinematográficas que, logo no início do filme, parecem demonstrar intenções de um elevado grau de dificuldade para serem absorvidas pelo seu público alvo primário mas capazes de usar os detalhes para fazer a ponte com um público mais exigente.
Falo tanto das imagens propagandísticas que resumem o Passado daqueles doze distritos e que têm a mesma estética de Olympia, como da versão do aspecto dos polícias que saíram da sociedade funcional de THX 1138. Podem até não ser referências directas mas sim diluídas pela sucessão de intermediários, mas estão lá.
Querendo-se ler uma ligação entre as duas, essa passa pelos dois extremos da exploração das imagens (televisivas, sobretudo) que tanto manipulam as emoções até que o valor moral por detrás delas se apaga como desumanizam o ser humano perante realidade mostrada como ficção.
Trata-se mesmo de querer ver a ligação pois, após mostradas essas referências, perde-se o alargamento do significado da violência (muito amenizada) tal como é mostrada ao público ficcional.
É o próprio filme a esquecer-se desse público depois de o mostrar a ser encaminhado como gado para a frente de um ecrã que a todos agrega - e a todos controla. O público só volta a existir quando é preciso dar uma breve noção de política que possa fazer ligação deste primeiro tomo às (inevitáveis) sequelas.
O ressurgimento é mais estranho considerando que o filme não investe tempo algum a estabelecer as diferenças entre os distritos e o Capitólio. Vemos que há um nível de pobreza no distrito de origem da protagonista mas visualmente este sugere-nos um idílio bucólico em que a desenvoltura humana se valoriza face aos excessos dentro da influência geográfica directa dos poderosos.
Parece que o filme tem pouco tempo a perder com a descrição do universo em que se insere aquilo a que ele dedicará o seu cerne: os confrontos na arena.
Os Jogos são longos e rapidamente se tornam aborrecidos à medida que se revelam um conjunto mal encarrilhado de momentos violentos que ignoram a sua contraparte de instinto de sobrevivência individual.
Mais fastidiosos se tornam quando resvalam para o melodrama amoroso - sem contextualização dos propósitos da criação do mesmo pelas personagens centrais - no tom que preenche toda a ficção juvenil.
Mesmo assim, a maior culpa do desengajamento com esta fase do filme é de Gary Ross e o estilo pelo qual optou.
A câmara à mão não é apenas uma forma instável e errática de tentar filmar a acção dentro da arena, é um contra-senso quando a estrutura da mesma é dominada por câmaras ocultas (vemos uma instalada dentro de uma árvore) que permitem o uso de qualquer ponto de vista desejado.
Tal situação teria sido, finalmente, a justificação certa para a montagem que se faz valer de um incontável número de planos, bem como a forma inteligente de regressar à reflexão sobre questões de manipulação por via das imagens num momento em que há um realizador a mexer com vidas dentro de um mundo fechado onde tudo é possível e tudo tem um propósito.
Está visto que são poucos aqueles capazes de aprender essa lição de The Truman Show, a de conjugar o imaginário televisivo com um valor cinematográfico que o supere mesmo se a estética dele dependa.
A única proposição em sentido contrário vem da ferramenta mais inteligente usada nesta passagem da palavra escrita à imagem projectada e que é o recurso aos apresentadores do evento para contextualizarem os elementos que precisavam de diversos parágrafos. Vale a exuberância de Stanley Tucci para recontextualizar os Jogos como ferramenta de entretenimento apaziguante dos habitantes do Capitólio que vivem num feliz estado de ignorância e como arma de domínio atemorizante dos restantes membros da nação que se poderiam erguer contra o poder instituído e injusto.
O filme acabou por reduzir o mundo distópico que se lia para lá da narrativa na primeira pessoa a um foco exclusivo na jornada da personagem central, heroína improvável muito bem composta por Jennifer Lawrence que reforça a dureza solitária - e pouco empática - que lhe valeu uma nomeação ao Oscar enquanto, ao mesmo tempo, se permite aproximar do estilo luminoso que preenche o ecrã e conquista uma legião de fãs.
Talvez esse seja um efeito adicional que funciona como atestado à vertiginosa criação de estrelas (e subsequente destruição) com que se ocupa a televisão. Um efeito meramente acidental que resume, mais uma vez, a incapacidade do filme de unir os temas mais fortes que estavam guardados para lá dos combates.


1 comentário:

  1. Esta crítica mereceu destaque na rubrica «A "Polémica" do Mês» do Keyzer Soze’s Place, disponível aqui: http://sozekeyser.blogspot.pt/2012/04/polemica-do-mes-11.html

    Cumps cinéfilos!

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